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Abuso no consumo de remédios pode causar doenças

IARA BIDERMAN
MARCOS DÁVILA
da Folha de S. Paulo
    
Dona Teresa, marido desempregado, sogra mora em casa. Dona Teresa, acredite, vive tranqüila e feliz. Seu segredo, sugere o folheto publicitário, é tomar um dos vários tranqüilizantes à venda nas farmácias. O texto da publicidade (dirigida a profissionais de saúde) é a perfeita tradução da cultura química atual: para toda dificuldade, há uma solução fácil, adquirível em qualquer farmácia.
    
Quer emagrecer sem esforço? Inibidor de apetite. Não consegue dormir? Calmante. Problemas no trabalho, na família? Antidepressivo. Em cápsulas ou comprimidos, parece existir uma solução na dose certa para cada percalço da vida. Só é preciso uma receita médica –algo que também não é difícil de se obter.
    
Clínicos gerais, ginecologistas, endocrinologistas e até dentistas podem receitar medicamentos psicoativos, que são drogas que agem no comportamento, humor e cognição. São drogas legais, mas algumas delas, causadoras de dependência química, entram nas estatísticas dos órgãos internacionais de controle de narcotráfico. O tranquilizante de dona Teresa (também chamado ansiolítico), por exemplo. E as anfetaminas, presentes em quase todas as fórmulas “infalíveis” para emagrecimento.
    
As últimas fazem o Brasil aparecer em destaque no relatório da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife), órgão ligado à ONU, divulgado em março deste ano. “O relatório aponta que o consumo de anorexígenos [drogas anfetamínicas que provocam redução ou perda do apetite] no Brasil cresceu 500% de 1997 a 2004”, diz Elisaldo Carlini, diretor do Centro Brasileiro de Informações so-bre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) e membro titular do Jife. Entram no país, anualmente, mais de 20 toneladas de matéria-prima para a produção desse tipo de droga.
    
O consumo desenfreado de anorexígenos pelos brasileiros –e, especialmente, pelas brasileiras, porque as mulheres consomem de seis a oito vezes mais do que os homens– traz a reboque um outro problema: o aumento da procura por ansiolíticos. “A anfetamina aumenta a atividade, diminui o sono, provoca ansiedade. Ninguém agüenta ficar tão acelerado o tempo todo”, diz a psicanalista Silvia Brasiliano, coordenadora do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química, do Instituto de Psiquiatria da USP.
    
Apesar de ser proibido receitar conjuntamente anfetaminas e benzodiazepínicos (a categoria de tranqüilizantes de uso mais generalizado), o controle frouxo dos órgãos de fiscalização permite a usuários, médicos e farmácias burlarem a lei com facilidade. Basta que o médico ou o paciente providenciem duas receitas separadas.
     
Iniciado o ciclo de excitar/entorpecer quimicamente o sistema nervoso central, junta-se à dupla dependência gerada a potencialização das reações adversas e a sobrecarga do organismo. “É como ficar o tempo todo com o pé no acelerador e no freio ao mesmo tempo. Funde o motor”, diz Brasiliano.
    
Coquetel químico
    
A analista de vendas Fernanda Mendonça, 32, não chegou a fundir o motor, mas sentiu os efeitos do coquetel químico prescrito no tratamento para emagrecer que iniciou em 2003. O endocrinologista indicou duas fórmulas que deveriam ser aviadas em farmácia de manipulação. Conteúdo: um benzodiazepínico, um anorexígeno, um derivado sintético de hormônios para queimar gordura e um laxante natural. “Sempre há uma dieta paralela aos medicamentos, com legumes, frutas e carnes magras. Mas ela nem é necessária, porque você acaba comendo muito pouco”, afirma ela.
    
Depois de cinco meses, Fernanda perdeu 20 quilos. Não durou muito: “Não tomei cuidado com a manutenção e engordei quase tudo de novo em 15 meses”. Além disso, nos últimos meses do tratamento, ela sentia falta de ar e teve uma grave queda de cabelo.
    
Há 20 dias, Fernanda iniciou um novo tratamento. Só que, dessa vez, além do calmante, do anorexígeno e do laxante, o endocrinologista receitou um antidepressivo. “Ele disse que eu estava muito para baixo. Agora, estou me sentindo mais disposta”, afirma Fernanda, que quer perder o excesso de peso em quatro ou cinco meses. “Depois disso, não pretendo mais ficar à base de fórmulas. Aí, já sei que começará o sofrimento. Tem de ter disposição. A orientação é fazer exercícios físicos, mas não tenho tempo”, afirma.
    
O abuso de psicoativos é fenômeno mundial. “O paciente espera que qualquer mal-estar tenha remédio; o médico muitas vezes passou por um programa educacional inadequado. Como resultado, é comum o consumo em dosagem excessiva e por tempo prolongado”, diz o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, diretor do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Unifesp – Universidade Federal de São Paulo).
    
Há casos em que os benefícios justificam o uso. “O problema é quando o remédio entra para ajudar a superar qualquer insatisfação da vida. Para mim, não existe justificativa para esse tipo de prescrição”, diz Silveira.
    
Com a idéia de “receitar” a vida, vem a de medicar a tristeza. Hoje, qualquer tristeza ganha o rótulo de depressão -seguida por uma prescrição de antidepressivo. “Não tem de dar medicamento para a tristeza”, afirma Leopol-do Luiz dos Santos Neto, chefe da clínica médica do Hospital Universitário de Brasília.
    
Drogas para controlar ansiedade causam dependência
    
Os problemas da secretária Daniele Santos, 24, começaram quando ela tinha 16 anos, com os inibidores de apetite. “Certa vez, perdi dez quilos em poucos meses, mas me sentia muito triste. Os remédios começaram a me fazer mal. Tinha problemas de memória e meu humor era péssimo. Não sentia nem vontade de me levantar de manhã. Vivia nervosa, tinha vontade de ficar sozinha, era muito agressiva.”
    
Aos 20 anos, ela parou com as anfetaminas e procurou um endocrinologista, que lhe indicou um antidepressivo (fluoxetina) para cuidar da ansiedade. “Até hoje, não sei por que ele me indicou um antidepressivo para perder peso.” Segundo ela, o remédio não trouxe tantos problemas quanto as anfetaminas, mas dava muita sonolência durante o dia e, à noite, ela não conseguia dormir. “Não sabia se a droga era para emagrecer, para acalmar, para tirar ansiedade ou se era para ficar feliz. Dizem que é a droga da felicidade, né?”, pergunta Daniele, que parou com todos os remédios e está matriculada em uma academia.
    
Segundo o psiquiatra Sergio Klepacz, do Hospital Samaritano, a fluoxetina, chamada de “droga da felicidade”, funciona como um filtro de “sensações”. Por isso, também inibe o apetite e o desejo sexual.
    
Dependência
    
Quem procura drogas psicoativas deveria saber (ou ser informado), em primeiro lugar, que várias delas, comprovadamente, causam dependência, como as anfetaminas e os benzodiazepínicos. “É muito comum as pessoas não saberem disso e não associarem sintomas [de dependência] ao medicamento. A dificuldade é que elas não foram a uma boca de fumo, mas apenas compraram o que médico mandou. E na farmácia”, diz a psicanalista Silvia Brasiliano.
    
A coisa pende ao descontrole total quando se sabe que, mesmo sem acompanhamento médico, é fácil obter remédios psicoativos. Desde 1990, quando se separou do marido, a artista plástica Helena [nome fictício], 67, toma um ansiolítico para dormir e um antidepressivo. Para obter as drogas, Helena tornou-se uma “paciente serial”: vai a um, depois a outro e a outro médico do seu plano de saúde. Não se fixa em nenhum, mas obtém várias receitas.
    
Foi o jeito que arrumou, depois de enfrentar as dores da dependência. “No começo do ano, o clínico geral ao qual eu ia resolveu suspender o uso do calmante. Passei duas noites sem dormir. Fiquei parecendo um zumbi, os olhos arregalados”, diz. Somente no terceiro dia ela adormeceu, depois de conseguir um comprimido “emprestado” com a irmã –prática nada incomum, segundo ela, que também já “emprestou” calmantes para o sobrinho.
    
Depois de uma semana, Helena voltou a se consultar com o médico e “exigiu os comprimidos de volta”. “Estava nervosa, parecia aqueles drogados de filme”, lembra.
    
Pacientes usam artifícios para conseguir remédio, diz farmacêutico
    
Para o farmacêutico Reginaldo Teixeira Mendonça, “os pacientes usam vários artifícios para conseguir o remédio: simulam sintomas, pedem para aumentar a dose. A essa demanda corresponde uma passividade e uma acomodação de parte dos médicos”.
    
Mendonça defendeu uma tese de mestrado sobre o uso de benzodiazepínicos em mulheres com 60 anos ou mais, no Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. “A população vai se apropriando dos termos médicos, adaptando o uso à sua realidade. Se o filho perdeu o emprego, e ela ficou triste, é só chamar a tristeza de depressão que ela se torna candidata a tomar o antidepressivo. Se o marido está violento e ela está preocupada com isso, é só se dizer ansiosa que ela se torna candidata a um ansiolítico”, diz o especialista.
    
O perigo é que, de acordo com o farmacêutico, a droga tende a ficar durante mais tempo no organismo do paciente idoso, o que pode intensificar os efeitos colaterais.
    
Para agravar o problema, esse público em geral está próximo dos serviços de saúde, por causa de outras doenças que aparecem na velhice. “Obtida a droga, da qual se torna usuária, a paciente acaba receitando-a para a família, os vizinhos.”
    
Segundo o psiquiatra André Malbergier, coordenador do Grupo de Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas de São Paulo, “muitas vezes, o médico pede alguns exames e diz: “A senhora não tem nada, mas vou dar um calmante para que se sinta melhor””. Para ele, geralmente os médicos não explicam que o uso do tranqüilizante é de curto prazo e não fazem um acompanhamento de manutenção. “Como o efeito é rápido e dá um bem-estar, as pessoas não querem parar”, diz.
     
Mas a busca do bem-estar por meio de calmantes e antidepressivos está longe de ser um problema somente de mulheres adultas. Basta uma rápida procura na internet para achar dezenas de comunidades virtuais com comentários elogiosos a substâncias psicoativas legais. Os membros desses grupos, geralmente com menos de 30 anos, trocam informações sobre dosagens, combinação de remédios com álcool, efeitos colaterais, maneiras de burlar os médicos e de conseguir os medicamentos sem receita. “Vivemos uma perigosa epidemia da busca de prazer ligado ao consumo de drogas”, afirma Malbergier.
    
Estoque de remédios
    
O consultor ambiental Fernando Mammana Bastos Cruz, 33, toma há quatros anos um medicamento para dormir, prescrito por um parente que é clínico geral. “Comecei porque tenho um quadro de ansiedade.”
    
As drogas específicas para insônia são os chamados hipnóticos. Alguns dos medicamentos são com benzodiazepínicos (agem também nos sintomas de ansiedade), outros são hipnóticos “puros”, só para induzir o sono, explica Ademir Baptista Silva, neurologista da Unifesp. Aumentam a quantidade, mas não a qualidade do sono. “O medicamento faz com que o sono fique só na fase superficial. A pessoa dorme, mas não descansa –quando acorda, parece que está de ressaca”, diz Silva.
    
No ano passado, Mammana começou a usar um segundo ansiolítico para acelerar a velocidade do primeiro, que já estava perdendo o efeito. “O remédio me faz tremer um pouco, mas, mesmo assim, é ótimo. Eu indico para quem precisa”, afirma Mammana.
    
Segundo Ademir Baptista Silva, remédios para dormir são indicados em casos de insônia, mas não devem ser ingeridos por longos períodos, pois podem levar à dependência, e fazem com que o organismo desenvolva tolerância, exigindo doses cada vez mais altas.
    
Com tantas histórias de mau uso, é bom lembrar que as drogas psicoativas também trazem numerosos benefícios. “Medicamentos como os ansiolíticos foram uma grande descoberta. Você precisa dessas drogas em situações de crise, para se acalmar e poder lidar com o problema. O que não dá é para imaginar que a vida não tem problema e, quando surge algum, isso já vira angústia que precisa ser medicada”, diz a psicanalista Silvia Brasiliano, do Instituto de Psiquiatria da USP.
    
Da Assessoria de Imprensa do Cremepe.
Com Informações da Folha de São Paulo.
Jornalistas IARA BIDERMAN & MARCOS DÁVILA.