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A falta que faz o básico

SAÚDE Deficiência na abordagem do curso, condições ruins de trabalho e falta de perspectivas desvia jovens médicos da Atenção Primária

O aumento da procura por registro profissional após o edital mais recente do Mais Médicos fez Conselhos Regionais de Medicina montarem uma força-tarefa para emitir milhares de CRM – sigla que nomeia a cédula de identidade médica, um documento obrigatório que atesta legalidade do exercício da função. A abertura de vagas no programa provocou uma corrida de recém-formados, que teoricamente, em sua maioria, gostariam de fazer residência médica e não teriam a expectativa de início imediato da prática médica após a colação de grau nem de trabalhar em unidades da atenção básica de saúde – uma área onde atuam os profissionais do Mais Médicos. As perspectivas profissionais dos concluintes colocadas à tona na pesquisa Demografia Médica 2018, do Conselho Federal de Medicina (CFM), deixam transparecer que a realidade atual percorre na contramão dos desejos de recém-formados , que – em parte – têm auxiliado a preencher vagas da atenção básica, especialmente em áreas de maior vulnerabilidade social.

Por outro lado, segundo o levantamento do CFM, quase metade dos egressos (46,7%) alega que optaria por trabalhar no setor público, desde que tivesse padrão de remuneração e condições de trabalho equivalentes ao privado – setor escolhido por 12,2%. Para 41,1%, é indiferente atuar em qualquer uma das duas áreas. “Se esses parâmetros fossem semelhantes, optaria pelo setor público, que pode proporcionar estabilidade. É uma área em que ajudaríamos quem mais precisa. Hoje, um dos problemas é a falta de estrutura para se trabalhar na atenção básica. Não há insumos mínimos e faltam medicamentos. Em alguns casos, não há disponibilidade para se indicar um exame. Como fechar um diagnóstico nessas condições? E assim a gente não vê a vida do paciente mudar”, relata o médico Gustavo Ferreira, 26 anos, que colou grau no último dia 21.

Assim como a maioria dos recém-formados, ele quer cursar residência médica. A pesquisa do CFM mostra que 80% dos egressos pretendem seguir esse caminho após a graduação. Mas Gustavo também deseja atuar na Marinha, no Exército ou na Força Aérea. “Farei a prova da residência em cirurgia geral. Se selecionado, tranco o primeiro ano para atuar nas Forças Armadas”, diz. Depois, ele tem a opção de seguir com o curso e manter o vínculo com o serviço militar. A especialidade que ele pretende seguir é a terceira mais desejada para residência médica: tem a preferência de 8,8% dos egressos (a primeira é pediatria, com 12,3%). A pesquisa ainda destaca o fato de medicina de família e comunidade ser uma das especialidades com ampliação da oferta de vagas de residência médica, mas que é a primeira opção para só 1,5% dos recém-formados, abaixo da cirurgia plástica, prioritária para 2%.

A crise que emergiu recentemente no Mais Médicos colocou em evidência a importância da medicina de família e comunidade, que congrega médicos atuantes em postos e outros serviços de Atenção Primária em Saúde. É um profissional que olha a pessoa de maneira integral, não só na doença. Por isso, é capacitado para compreender sentimentos e expectativas dos pacientes, com a missão de identificar que a doença pode impactar a vida pessoal, familiar, profissional e social. “Nos currículos do curso de medicina, é regra os alunos transitarem por essa área da atenção básica, que hoje precisa ter a complexidade do trabalho resgatada. É uma especialidade que exige menos tecnologia, mas requer uma habilidade do médico para lidar com doenças frequentes, sem deixar de analisar questões sociais e psicológicas (da comunidade atendida). Tudo isso exige um grau de formação que não está presente como efeito finalístico nas escolas de graduação”, ressalta o médico pediatra Jailson Correia, secretário de Saúde do Recife.

Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a médica epidemiologista Gulnar Azevedo sublinha que a experiência vivida no Brasil com os médicos cubanos foi essencial para trazer um debate sobre a formação humanística. “Eles fizeram outro tipo de relação na atenção básica: escutavam e acompanhavam de perto os problemas da população.” Para ela, a formação médica no País ainda é muito voltada à especialização.

“A abordagem focada no trabalho em postos de saúde, por exemplo, ainda é pouco valorizada. Para isso mudar, são necessários tempo, incentivo e melhores condições de trabalho”, acrescenta Gulnar, sem deixar dúvidas sobre a valia da cobertura pública universal e igualitária em saúde. “Defendo o SUS (Sistema Único de Saúde), pois é o melhor modelo que se pode ter. Mas é preciso mudar a lógica de formação de recursos humanos, investir em plano de carreira e em condições dignas de trabalho”, conclui a epidemiologista.

Setor privado privilegia os especializados

Em compasso com o crescimento do número de médicos no País, o setor privado segue em franca expansão e, segundo o gerente-executivo do Sindicato de Hospitais do Estado (Sindhospe), Iberê Monteiro, sem riscos de déficit para absorver os novos profissionais que chegam ao mercado. Impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico da medicina, o setor, no entanto, preocupa-se com a necessidade da formação cada vez mais especializada dos médicos.
“A gente ainda não está com esse termômetro em relação à absorção de novos médicos. Hoje, temos focado muito na questão das especializações. O quadro que temos é que novos médicos estão chegando, mas como médicos gerais. Temos vários serviços mais especializados, e tem que se focar nisso também”, afirma Monteiro.

A preocupação com as especializações se reflete sobretudo por conta dos investimentos tecnológicos, grande responsável por movimentar a economia na saúde privada. “No setor hospitalar, quanto mais tecnológico, mais postos de trabalhos. É diferente, por exemplo, da indústria, que retira vagas com a aquisição de novas máquinas. Na saúde, quando entra mais um equipamento, é preciso uma equipe imensa para operar aquela tecnologia”, reforça Monteiro.

Apenas em 2018, três hospitais do polo médico do Recife investiram juntos R$ 180 milhões em ampliação física e tecnológica. Em número de leitos, são cerca de 300 vagas a mais.

O mercado de saúde, tem papel fundamental na geração de empregos. Somente em Pernambuco, são mais de 150 mil postos. Para cada leito, no mínimo cinco funcionários. “Numa conta rápida, um hospital como o Português, com mil leitos, contabiliza no mínimo cinco mil funcionários”, explica o gerente-executivo do Sindhospe.

Segundo levantamento da Hospitalar, quarta maior feira de saúde do mundo – que acontece em janeiro, em São Paulo –, com base em dados da Federação Brasileira de Hospitais (FBH), Faculdade de Medicina da USP e Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), o setor de saúde já representa quase 10% do PIB brasileiro, com mais de 6 mil hospitais e quase 600 mil leitos (44% na rede privada).

Para o diretor de mercado do portfólio da saúde da UBM Brazil, Vitor Asseituno, o Brasil é um País que investe muito em hospitais e teve o investimento em tecnologia acelerado desde 2014, com entrada de recursos internacionais. “É preciso pensar em como a tecnologia pode tornar o médico mais presente até mesmo fora do hospital. O Brasil é um País muito ‘hospitalcêntrico’. O Banco Mundial diz que não estamos preparados para doenças crônicas, porque a gente investe pouco em saúde básica”.

“O cenário é apocalíptico”

JC – O que explica um maior interesse dos recém-formados em fazer residência médica, em comparação a qualquer outra atividade, logo após a conclusão da graduação?

ANDRÉ DUBEUX – Atualmente, não há condições alguma de um médico graduado exercer a profissão em sua plenitude, apesar do diploma legal. A residência médica é praticamente mandatória. Outro ponto que merece destaque é que não existe (vaga de) residência médica para todos os egressos. Estamos formando aproximadamente 35 mil médicos por ano (no Brasil). A projeção é que, em 2050, existam cerca de 1,5 milhão de médicos. Vamos triplicar (em comparação ao universo atual, de 452.801 médicos). O cenário é apocalíptico, na minha concepção. Aqui, em Pernambuco, são 600 vagas por ano de residência médica. Este ano quase 2,5 mil pessoas fizeram provas. Ou seja, 1,9 mil ficaram fora. Obviamente que a assistência à população vai cair. Por outro lado, apenas 74% das vagas de residência médica em Medicina de Família e Comunidade são preenchidas. Isso acontece pelo desestímulo; não há carreira de médico de Estado, as condições de trabalho são muito ruins. Existe também um desvirtuamento da Saúde da Família, que está há bastante tempo precisando rever alguns conceitos. Por que eu digo isso? As duas patologias que mais demandam atualmente da Atenção Primária são diabetes e hipertensão. Se ambas não forem tratadas adequadamente, vai estourar a Atenção Terciária (serviços de alta complexidade, como os hospitais). O Hospital da Restauração, o Getúlio Vargas e o Otávio de Freitas lotados de pacientes com AVC (acidente vascular cerebral) e infartados, com pé diabético…

JC – E estamos falando de doenças que podem ser prevenidas e controladas na Atenção Básica à Saúde.

ANDRÉ DUBEUX – A saúde básica deste País está muito ruim. E ainda tem a questão da segurança. Basta imaginar que, ao entrar em determinadas comunidades, é preciso fazer um acordo com o traficante. E isso não é só no Recife; é no Rio, em São Paulo, na Baixada Santista… A coisa não é tão simples como a gente pensa. Muitos dos médicos que se formaram recentemente (entre os dias 21 e 24 de novembro, o Cremepe fez a inscrição de 381 médicos) foram atraídos pelo salário de 11,8 mil reais (referência ao valor da bolsa-formação do Mais Médicos, cujo novo edital fez crescer o número de registros nos conselhos em todo o Brasil). A maioria diz para a gente que vai passar dois anos (vinculado ao programa) e depois fazer residência médica. Ainda vem outro viés: as coisas ficam mais difíceis quanto maior for o tempo em que o médico fica sem fazer residência, que está pior do que vestibular.

JC – Como estão distribuídas as vagas?

ANDRÉ DUBEUX – No Brasil, as vagas de residência médica são fixas. Em outros países, como na Inglaterra, se não há necessidade de se ter mais anestesiologistas, e sim mais pediatras, abrem-se vagas na pediatra, por exemplo. Em Pernambuco, precisamos de mais médicos de saúde da família, neonatologistas, pediatras e obstetras. Essas especialidades, ao longo do tempo, foram perdendo atratividade remuneratória e condições de trabalho. Hoje, os alunos se formam e querem radiologia, dermatologia, oftalmologia, medicina do tráfego. Não é disso que precisamos, e sim de uma forte atenção primária.

JC – Se pensarmos em Medicina de Família e Comunidade, falta algo para a especialidade ser mais atrativa a ponto de ser escolhida para a residência?

ANDRÉ DUBEUX – Os médicos que queiram se dedicar (a essa especialidade) precisam ter carreira de Estado e vínculo empregatício definitivo. Obviamente que isso não passa só pela condição remuneratória e de estabilidade, mas também por uma melhor equipe multidisciplinar para se trabalhar a (assistência) materno-infantil, que considero hoje um caso de polícia. O Estado brasileiro não cumpre o que diz o Ministério da Saúde, que recomenda pelo menos seis consultas no pré-natal. As mulheres não têm essas consultas. Na 12ª semana de gestação, por exemplo, é o momento de se passar pelo ultrassom morfológico (exame feito na gravidez que avalia o risco de alterações genéticas). E (muitas mulheres) não conseguem fazer (o exame) no Sistema Único de Saúde (SUS). Outra coisa: voltamos a discutir sífilis neonatal (infecção transmitida para o bebê na gestação), que é uma doença bíblica. Quando analisamos por que os casos ocorrem, percebemos que é a falta de penicilina benzatina (usada para tratar a sífilis em gestantes). A empresa não queria mais fornecer (o medicamento) porque uma ampola de penicilina benzatina custa 3,50 reais. Então, respondo diretamente: não há procura pela residência em Medicina de Família e Comunidade porque não há segurança jurídica nem carreira de Estado. Entregamos uma carta, ao presidente eleito (Jair Bolsonaro), das entidades médicas com essas propostas. Precisamos ver algo atrativo para o médico de saúde da família, que é um profissional fundamental no SUS.

JC – Esse é o contexto que faz a Medicina de Família e Comunidade a ser a 1ª opção de residência só para 1,5% dos egressos?

ANDRÉ DUBEUX – Sim. O médico sempre pensa em ter um status; é preciso admitir isso. Ele quer ter um carro do ano, um consultório e quer viajar. A saúde da família, nesse modelo atual, está longe disso, muito longe disso. Estamos com esperança na receptividade do médico indicado ao cargo de próximo ministro da Saúde (Luiz Mandetta), que conhece os anseios da categoria. Talvez… Não sei se ele vai conseguir, mas é uma esperança que a gente tem.

JC – Neste panorama em que a maioria dos recém-formados quer fazer residência médica, ter consultório, trabalhar em hospitais e clínicas e que, por outro lado, uma minoria tem como preferência atuar em unidades básicas de saúde e em programas de saúde da família, como o senhor analisa, a longo prazo, o Mais Médicos, que é um programa pautado na Atenção Primária à Saúde?

ANDRÉ DUBEUX – Nunca fui contra o Mais Médicos. Não concordo, assim como as entidades médicas, com médicos que não tiveram o diploma revalidado. Mas não vamos entrar mais nesse mérito. O Mais Médicos, do ponto de vista de levar os colegas a lugares distantes, foi válido. Pensar, no entanto, em resolver o problema da saúde pública com a presença de médico é querer pensar, com toda honestidade, que a gente é idiota. Isso é tão verdade que o Mais Médicos não resolveu o problema da saúde pública no Brasil. No Recife, que tinha médicos cubanos, a saúde pública é uma vergonha: falta material, e estava na pauta a questão remuneratória. Mas a pauta principal é a segurança. Para se fazer visita domiciliar, o médico precisava ter o aval do poder paralelo, que é o dos traficantes. O Mais Médicos é importante. Se não houver, contudo, mudanças de paradigma, de fluxo e de gestão, continuará sem resolutividade.

JC – Se a maioria dos recém-formados hoje quer logo fazer residência e uma minoria deseja início imediato da prática médica, os médicos que colaram grau recentemente e ingressaram no Mais Médicos estão indo a um local que não é preferência deles?

ANDRÉ DUBEUX – Sim, eles estão indo pela atração financeira; não tenho duvidas disso. É o principal chamamento. Os recém-formados estão indo pela questão remuneratória, talvez até por uma questão da segurança jurídica e pela promessa do presidente eleito criar carreira de médico de Estado. Talvez seja isso.

JC – Muitos recém-formados optariam pelo setor público se remuneração, condições de trabalho e número de horas fossem equivalentes aos do privado. Como o senhor analisa esse cenário?

ANDRÉ DUBEUX – Um exemplo: na Inglaterra, as coisas funcionam. Aqui, uma pessoa com retenção urinária passa 18 meses entre o tempo de levar exames (ao médico) e ter a data da cirurgia confirmada. É um sistema falido. Se eu tivesse condições (de trabalho no sistema público), não teria consultório particular. Começaria às 7h e terminaria às 16h, como na Inglaterra, onde os médicos são bem remunerados e disciplinados. Eu tenho 28 anos de formado e dois vínculos com o Estado: um quando me formei e outro há 25 anos. Ganho, com ambos os vínculos, 10 mil reais. Isso (remuneração e condições de trabalho) tem que ser discutido.

JC – E o senhor, doutor, acredita no SUS?

ANDRÉ DUBEUX – É uma pergunta capciosa. O SUS foi o maior modelo de inclusão social do País. Mas ser igualitário com recursos finitos, como os gestores exigem, é difícil. Não sou contra o SUS. Acredito nele conceitualmente, mas acho que ele precisa ser revisto em alguns pontos, como na questão de financiamento.