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O caminho certo contra o crack

Plano que será lançado este mês no Recife se baseia em redução de danos, que ajuda o dependente a reorganizar a vida e reconstruir vínculos familiares

Redução de danos é a principal estratégia da Secretaria de Saúde do Recife para o plano integrado com outras áreas que a prefeitura pretende lançar ainda este mês contra o crack. Introduzida na política de saúde mental do município desde 2001, ganhou status de programa em 2004 e agora norteia todas as ações de prevenção e assistência a dependentes químicos, seguindo tendência do Ministério da Saúde. “Vamos implantar dez consultórios de rua, ampliar o horário de funcionamento dos seis Centros de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas (Caps-AD) com a contratação de 50 profissionais e criar uma escola de redutores de danos”, adianta o secretário-executivo da Saúde, Tiago Feitosa.

Com a redução de danos, a abstinência não é a primeira condição para início do tratamento nem o único objetivo. Ajudar a pessoa a se conhecer, a cuidar de si, a reorganizar a vida e reconstruir vínculos com a família e a sociedade são os pontos de partida. A lógica é diminuir prejuízos, respeitando a escolha do indivíduo. Os redutores de danos atuam nas escolas, nas ruas, nos bares, nos postos de saúde, nos Caps – centro onde o usuário de droga pode passar uma parte do dia em terapia de grupo e individual – e albergues que abrigam quem precisa ficar longe de casa ou do assédio dos traficantes. No Carnaval estão nos focos da folia orientando sobre o uso de preservativo nas relações sexuais e convencendo quem bebe álcool a não dirigir veículos.

A redução de danos seria, então, o atestado de impotência diante das drogas? A professora Roberta Uchôa, do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco, especializada em álcool e drogas e com experiência na assistência a dependentes químicos, diz que “uma sociedade sem drogas é sonho impossível”. A história “demonstra que sempre usamos algum tipo de droga com diferentes finalidades, para obtenção de prazer e para fins do comércio e do lucro, como no caso das indústrias do álcool, do tabaco e dos medicamentos”. Por isso, argumenta, são necessárias políticas integrais que promovam a redução da oferta, da demanda e dos danos relacionados ao uso.

Roberta Uchôa coordena o projeto de criação da escola de redutores de danos em parceria com a Prefeitura do Recife. Lembra que no Brasil o debate sobre o uso terapêutico da maconha ganha força com a proposta de criação da Agência Nacional de Cannabis Medicinal, para conduzir estudos, por exemplo, como o da erva em substituição ao crack. “Temos que promover debate com evidências científicas para dar conta da tamanha complexidade.” A redução de danos pode ser aplicada a hipertensos, diabéticos, orientando-os a reduzir o consumo de sal e açúcar. No caso de álcool e drogas, explica, “a maioria dos dependentes não consegue parar de usar e muitos não querem parar. Por que com estes temos que adotar a estratégia do tudo ou nada?”.

João Marcelo Costa, psicólogo e gerente clínico do Caps-AD Eulâmpio Cordeiro, explica que uma estratégia inicial de redução de danos pode ser orientar o usuário a utilizar cachimbo apropriado em vez de um improvisado com tubo de caneta que acaba causado infecção respiratória. Depois, vai se construindo com o usuário alternativas de redução do uso. Para ele, o crack desafia a clínica por estabelecer uma dependência muito rápida e chama a atenção da sociedade por exigir políticas públicas. “É a mazela da vez. Houve tempo em que a loucura ocupou muito esse lugar, depois veio a cólera”, exemplifica. O subproduto da cocaína, mais barato e devastador, causa também impacto pela violência em seu entorno. “O problema não é simplesmente a droga e sim a relação que a pessoa estabelece com ela e que impede a vivência de outras coisas”, completa a psicóloga Conceição Melo, também gerente do Eulâmpio, com 19 anos de atuação na casa. Ao longo desse tempo Conceição viu muitos usuários desistirem do tratamento. “A evasão é grande. O usuário vive conflito interno e pressão externa”, descreve, lembrando que os problemas que rondam a família e a comunidade permanecem mesmo quando o dependente busca tratamento. Por isso, a lógica da intervenção da saúde é a territorialidade, tratar a pessoa no seu espaço, para onde ela volta, mesmo que seja confinada em longa internação e abstinência.

Apesar de defensora da redução de danos, a coordenadora do programa Mais Vida e da política de álcool e drogas da Secretaria de Saúde do Recife, Pollyanna Pimentel, afirma que não existe solução única na abordagem da dependência e reconhece a necessidade de internamentos. “Trabalhamos com um conjunto de alternativas para que seja aplicada a que mais se adequa ao projeto de cada usuário. Esse projeto é construído pela pessoa e acompanhado por equipe multidisciplinar, que inclui médico clínico, psiquiatra, psicólogo, enfermeiro, terapeuta ocupacional, assistente social e agentes redutores de danos.”

O psicólogo Marcus Vinícius Oliveira, professor da Universidade Federal da Bahia, membro da Luta Antimanicomial, é enfático: “A reforma psiquiátrica na luta contra as drogas chama-se redução de danos”. Lembra que o crack vem sendo consumido no Brasil há 20 anos. Mas como mudou de classe social e “aos olhos da sociedade toca em vidas aproveitáveis – as classes médias urbanas – merece alarde. “Enquanto esteve corroendo bordas periféricas da subalternidade, da ralé, não houve investimento. Que se matem e morram por lá!, era o pensamento”, diz. Para Marcus, a proposta mais avançada do SUS é o consultório de rua, mas ainda não é valorizada na política antidrogas.

Médico defende capacitação e mais serviços

O coordenador do Núcleo Especializado em Dependência Química do Hospital das Clínicas da UFPE e fundador do Centro Eulâmpio Cordeiro, psiquiatra José Francisco Albuquerque, diz que a redução de danos é importante quando se trata de dependência química. “Como uma pessoa dependente do álcool há 40 anos vai deixar o vício se o álcool se confunde com a vida dele?”, reconhece, lembrando que a redução de danos, neste caso, tem participação importante na reeducação.

Mas com o crack, segundo ele, é diferente. “A sensação de prazer gerada pela droga é rápida e o usuário tem necessidade de repetir continuadamente. Ele não usa uma, duas ou três pedras, consome diariamente uma quantidade enorme”, afirma. Mesmo que o perfil psicológico seja igual ao de usuários de outras drogas, a dependência se instala de forma mais intensa e isso exige tratamento diferenciado. “Há situação em que não dá para fazer redução de danos. É necessário internar e medicar a pessoa para diminuir a ansiedade.”

Conforme o psiquiatra, também não resolve só afastar a pessoa das convivências anteriores, sem oferecer assistência continuada e por profissionais experientes, psiquiatras, clínicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais. “Não basta fazer concurso e ter um lugar para atender. É preciso oferecer tratamento qualificado.” Por isso, ele defende maior integração entre as redes de saúde mental do Estado e do município com centros de referência e formação, como o núcleo de estudos em dependência química do HC.

AMPLIAÇÃO

Para José Francisco, é necessário ampliar a rede de saúde mental. “Temos 12 leitos para psiquiatria no HC, que é um hospital geral, e vivem sempre ocupados.” Ele afirma que há dificuldades para encaminhar usuários de crack para o Hospital da Mirueira, que só recebe dependentes de álcool, e para outros hospitais gerais. “Os Caps do Recife só atendem à demanda referenciada em seu território e mesmo assim há tempo de espera”, conta.

Para José Francisco, as comunidades terapêuticas prestam um serviço enorme e ocupam espaço por falta de política sistemática do governo. As religiosas têm atuação importante, para alguns usuários é o lugar que precisam, mas é necessário criar retaguarda química, um serviço de referência integrado, com assistência de profissionais de saúde, completa. O Núcleo Especializado em Dependência Química do HC atende ao público e serve de campo de estudo para profissionais em especialização. Foi criado há dez anos e o atendimento é multiprofissional.

Opinião de ex-usuários

João e Antônio (nomes fictícios) são jovens que nos últimos sete anos mudaram de lugar no mundo das drogas. Dependentes que passaram pela prisão e o manicômio, tornaram-se militantes da luta que tenta devolver a vida a quem se destrói no consumo do pó, da maconha, do álcool e de comprimidos. Colaboradores da redução de danos, condenam o internamento obrigatório e defendem diferentes soluções.

» João

Cheguei ao Caps AD com 17 anos, encaminhado pela Justiça, depois de ser preso. O juiz aplicou pena alternativa porque eu era usuário de maconha, loló e crack. Um conjunto de coisas me fez usar drogas. Além das amizades, perdi minha mãe cedo, meu pai era muito ausente e quem se responsabilizava por mim era minha irmã mais velha, que fez muito bem essa função e me deu força suficiente para eu sair das drogas…

…Tratamento é importante, mas o fundamental é resgatar a família. Se eu tivesse preso não estaria aqui, vivendo, trabalhando, sustentando a casa e sendo referência na comunidade. Fui para albergue, recebi assistência de psicólogo, assistentes sociais, mas não consegui me adaptar. Ou eles me liberavam ou eu fugia…

…O Caps é fundamental porque é o primeiro espaço onde você pode desabafar, falar dos anseios, desejos, recaídas. O albergue é importante para quem não consegue se controlar. É um lugar onde você vai estar separado das drogas e das amizades, vai refletir, tomar as medicações, ter alimentação adequada, higiene, conversar com profissionais da área. Automaticamente sua autoestima muda, porque lá fora você vai se acabando, usando todo tipo de droga, ouvindo palavras negativas…

…Tudo isso é importante, mas ainda falta muita coisa porque não há interesse dos grandões. Agora, prisão, acho que nenhum usuário de droga merece. Se ficasse numa teria enlouquecido.”

» Antônio

Tinha 13 anos quando vi o pessoal usando droga no colégio. Comecei com álcool, fui para lança-perfume aos 15 anos e depois passei a usar maconha. Falam “não use droga”, “droga é ruim”. Mas, quando você experimenta, não é isso, é algo prazeroso…

…Ficou péssimo quando comecei a perder o controle do uso. Eu fumava antes de entrar na escola. Depois, quando saía, fumava de novo. Dizia em casa que ia fazer trabalho do colégio e saía para fumar, curtir e beber com a galera. A droga entra como prazer mas também para anestesiar. Quem não tem preparo psicológico, principalmente jovem, tem mais dificuldade para lidar com a situação. Se refugia na droga…

…Eu faltava à aula, tomava muito comprimido que dava alucinação e bebia bastante. O colégio falou com minha mãe e ela me internou num albergue terapêutico particular. No começo eu não aceitava ser viciado. Em 15 dias voltei à realidade e percebi os problemas que tinha causado. Permaneci um mês, saí, voltei e quando saí novamente estava com depressão forte, tive um choque com a realidade, não consegui me aceitar sem o uso da droga e tentei suicídio. Fui levado a um hospital psiquiátrico particular.

…Passei uma semana no hospital e disse ao meu pai que se me deixasse mais um dia ali eu ia fugir. Não havia tratamento. O pessoal fica dopado o tempo todo. Eu acordava à noite, os enfermeiros estavam numa casinha com grade, rodeados de remédio, dormindo. O psiquiatra aparecia raramente. Só depois fui levado ao Caps.”

Da Assessoria de Comunicação do Cremepe.
Fonte: Jornal do Commercio.