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Ernesto Marques: “Ainda não temos a solução definitiva contra o coronavírus, temos as soluções emergenciais”

Quando entrou no curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o cientista Ernesto Marques não tinha a menor noção do que era pesquisa. Até que conheceu o professor José Luiz Lima, hoje diretor do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (Lika), que havia acabado de chegar de um doutorado na Escócia. Marques entrou pela primeira vez em um laboratório e não saiu mais. “Não foi uma escolha fácil. Sabia desde o início as dificuldades, não só no Brasil, de uma carreira hipercompetitiva”, conta.

Ao longo de três décadas, Marques construiu uma carreira bem sucedida dentro e fora do Brasil. Na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi um dos responsáveis pela formação do departamento de virologia do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, no Recife, que custou US$ 7 milhões. Foi pesquisador e professor visitante na Universidade John Hopkins, líder em pesquisa em saúde nos Estados Unidos, onde também concluiu o doutorado.

Desde 2009 dá aulas sobre prevenção de infecções, virologia, imunidade e vacinas na Universidade de Pittsburgh, de onde conversou com a Marco Zero na semana passada. Com mais de 150 artigos publicados, também participa de pesquisas nos Estados Unidos e no Brasil sobre covid-19, zika, HIV e para o desenvolvimento de uma nova vacina da dengue. Na entrevista abaixo, ele fala sobre como o vírus e as vacinas contra a covid-19 podem evoluir e como investimento é essencial para pavimentar uma ciência brasileira independente.

Crédito: www.publichealth.pitt.edu

Marco Zero Conteúdo – A pandemia parecia estar sendo controlada com as duas doses de vacinas quando surgiu a ômicron, com uma explosão de casos muito acima das outras ondas. A ômicron pegou o mundo de surpresa?

Ernesto Marques – A adaptação viral é esperada. Já se tinha reconhecido que a taxa de mutação e adaptação desse vírus é grande e tem padrões diferentes de transmissão e sintomatologia. A ômicron tem uma característica: ela tem preferência por certas células da via aérea superior enquanto que as outras variantes tinham uma preferência maior para infectar o pulmão, causando portanto mais pneumonia. A ômicron afeta mais a via superior, mas não exclusivamente ela também pode afetar os pulmões. Essa característica de preferência por um tipo de célula é uma adaptação ao processo de transmissão. E isso é dar uma maior vantagem na transmissão porque você está produzindo a cepa logo ali na saída da via respiratória, facilitando a transmissão. Por haver mais casos assintomáticos, ou com poucos sintomas, as pessoas estão andando e distribuindo o vírus mais à vontade. Eu não acredito que essa vai ser a última cepa que vai aparecer. Outras vão aparecendo.

Quando a ômicron surgiu, se falou que poderia ser uma variante mais leve…

A Ômicron não é um vírus atenuado, como muita gente pensou, de que seria como uma “vacina” de um vírus atenuado. Muito longe disso. O vírus está matando no Brasil 800 pessoas por dia. No mundo, dez mil pessoas por dia. Então, pra quem acha que pegar a ômicron é menos arriscado que a vacina, é ter menos efeito colateral, não está olhando para a realidade. Já foram aplicadas mais de dez bilhões de doses de vacina contra a covid-19 pelo mundo e os óbitos associados à vacina – o que não quer nem dizer que tem a confirmação de causa e efeito, é bom frisar – é na faixa de um para um milhão.

Quando as vacinas surgiram, algumas delas, como as da Pfizer e da Moderna, evitavam a infecção e também a transmissão do vírus. Hoje, com a ômicron, a terceira dose ajuda a evitar agravamento e morte, mas não a infecção. Por que isso ocorreu?

Vou usar a dengue como exemplo. Temos quatro tipos de sorotipos: um, dois, três e quatro. O que isso significa? Para cada tipo de dengue, é induzido um tipo de anticorpo. Tem o anticorpo que vai neutralizar a dengue 1, mas não a dengue 2. Se você é infectado por um tipo, você ainda pode ter os outros três. Nesses dois anos, o Sars-Cov2 vem se adaptando e evoluindo em um ambiente imunológico que segue mudando. No início, ninguém tinha sido infectado, ninguém tinha sido imunizado. Então o vírus corria solto e sem barreiras imunológicas na comunidade que pressionassem ele a escapar dessas barreiras. Com o passar do tempo, com as inúmeras infecções e reinfecções de covid e pessoas imunizadas expostas à doença, o vírus passa por um processo de seleção. Aquele vírus que consegue infectar melhor as pessoas e se adapta para superar a resistência imunológica prospera mais do que os outros. A ômicron já é, de certa forma, uma solução da evolução do vírus pra enfrentar a resistência imunológica que ele encontra. Da mesma forma que as vacinas feitas com a cepa original de Wuhan não funcionam tão bem contra a ômicron, podemos esperar que o reverso seja verdadeiro. Se você tem anticorpos contra a ômicron não quer dizer que você vai estar protegido contra a cepa original ou outras. Nesse processo, enquanto a gente passa dessa transição de pandemia para uma endemia, vamos ter vários momentos de altas e baixas até chegar a um equilíbrio real e, talvez, surjam diferentes sorotipos. Agora, a evolução viral depende do número de infecções. Cada vez que uma pessoa se infecta é uma oportunidade de surgir um mutante resistente à vacina atual ou aos anticorpos induzidos pelas infecções anteriores.

Então por isso também que não é bom deixar o vírus como está atualmente, com recorde atrás de recorde de casos? Pode prolongar a pandemia?

Não é recomendável de forma alguma. No mundo, são três milhões ou mais de casos por dia, dez mil mortes por dia, isso não é aceitável. Em um ano ruim de influenza morrem nos Estados Unidos quarenta mil pessoas. São várias ordens de amplitude menor do que se morre pela ômicron. A questão é que, até hoje, e desde o início da epidemia, lá no começo de 2020, agimos como se a epidemia fosse acabar em três meses e já se vão dois anos nessa conversa. Não vai acabar sem um planejamento a longo prazo, com as adaptações e comportamentos necessários. As pessoas têm que ser capazes de funcionar na sua vida em termos de trabalho e socialmente, mas precisam de um nível de segurança razoável para viver o seu dia a dia de maneira que minimize a transmissão das doenças respiratórias como um todo. E isso não se fez. Aí fica sempre nessa iminência de que a epidemia vai acabar. De que vamos aguentar um tempo, e ninguém faz um planejamento a longo prazo.

Qual a importância da terceira dose para a ômicron?

É pela quantidade de anticorpos que são gerados. Não significa que os anticorpos contra a cepa original não reagem contra a ômicron. Eles reagem, mas como é uma cepa diferente, eles reagem com uma força menor. Se a pessoa tiver um nível médio de anticorpos e vier a cepa original, a vacina segura. Porque a vacina é forte para segurá-lo. Mas quando vem uma variante que é diferente, a pessoa já não segura com tanta força. Um anticorpo sozinho, vamos dizer, não é capaz de controlar a ômicron, mas se tiver três, quatro, cinco, um número maior de anticorpos, segura. Porque pode ser um anticorpo com afinidade menor, mas eu tenho tantos anticorpos que acabam segurando a doença. Essa é a lógica quando você toma um reforço. Tem um artigo recente mostrando que três doses, ou três exposições à espícula, com vacina ou infecção, têm uma abrangência maior na cobertura das várias cepas. Desde o início da imunização, quando as vacinas foram liberadas, a pergunta era até quando os anticorpos iriam durar. E a conclusão é que duram na faixa de seis meses. E, por isso, também há necessidade do reforço, para manter a imunidade tanto contra a cepa original e tanto contra as outras variantes.

Pode acontecer com o coronavírus o que acontece, por exemplo, com a gripe, em que em um ano circula mais uma cepa, no outro ano circula mais outra?

Pode. Também com a dengue é a mesma coisa. Tem ano que temos mais dengue 1, tem ano que temos mais dengue 4. Não é que a outra cepa foi extinta da natureza. Ela continua circulando na natureza. No momento, a ômicron é dominante e, em um determinado momento, vai encontrar uma resistência maior. Há dois caminhos que o vírus pode seguir: ou ele muta e gera novas variantes resistentes ou alguma das variantes antigas, que são menos afetadas pelas respostas imunes, vão ressurgir. E pode acontecer como a gripe, que de tempos em tempos aparece uma nova variante, ainda sem vacina, como aconteceu com os surtos da H3N2.

A evolução natural de todos os vírus é ele ficar mais fraco, mas infectar mais pessoas? Ou pode ser que surja uma variante que se espalhe tanto contra a Ômicron, mas que cause doença mais grave?

É esperado que, a medida que um vírus vai se adaptando ao hospedeiro, ele vá matando menos. Essa adaptação é para que ocorra uma simbiose que garanta uma melhor sobrevivência do vírus. Acho que um exemplo bem documentado é o caso do HIV. E, no entanto, o vírus não para de evoluir e vive aparecendo cepas resistentes aos medicamentos. Se as pessoas não tomarem o medicamento rigorosamente, se não controlar bem, o HIV fica mais resistente também. Por isso você tem uma variedade de medicamentos, se usa um esquema tríplice ou uma combinação maior ainda para o HIV. O Sars-Cov2 pode evoluir e causar uma doença mais branda, mas a direção não é sempre para esse lado. Pode seguir outros caminhos, outras direções que não necessariamente são favoráveis ao hospedeiro. A direção também não é sempre a mesma, não é sempre constante indo para o lado de menos doença. Pode ir para o lado de mais doença em alguns momentos. O vírus da influenza, por exemplo, tem cepas que são altamente patogênicas, outras que não. Com a dengue, a mesma coisa. A cepa da dengue 2 é bem mais propensa a causar dengue severa ou dengue hemorrágica. Essa expectativa de uma covid mais branda no futuro é uma expectativa, eu diria, que otimista, com um fundo de embasamento real, mas não é uma garantia.

E como é que o senhor vê essa questão da atualização das vacinas? É uma urgência?

Eu acho que o desenvolvimento das novas versões da vacina ou versões multivalentes das vacinas está evoluindo no prazo correto. Temos que considerar que uma boa parte da população mundial continua sem ter vacina disponível, então, ainda precisa ser fabricada quantidades enormes das vacinas atuais. E, no caso das novas versões, temos já duas em fase 3 de testes e, como são muito similares às vacinas atuais, o processo de validação, certificação de eficácia e segurança deve ser um processo relativamente rápido, já que as atuais já têm autorização plena, não é mais uma autorização emergencial.

O que você vê de mais promissor no futuro de vacinas contra a covid-19?

É fazer a vacina universal contra o coronavírus. Esse que é o “santo graal” da história. E as estratégias são diferentes. Uma vez que se conhece os locais onde o vírus aceita modificação e escapa do sistema imunológico, nós também reconhecemos áreas em que ele não consegue se modificar. E no momento que você identifica essas regiões em que ele não consegue se modificar, você faz vacinas contra essas regiões mais rígidas do vírus, que ele não consegue mutar pra escapar da resposta imunológica. Para isso, tem várias estratégias diferentes que estão em andamento. Talvez levem mais tempo porque são bem mais sofisticadas do que as vacinas que temos hoje, não na plataforma tecnológica mas na estrutura do antígeno que se usa na vacina.

E quanto tempo pode levar pra desenvolver essa vacina universal?

Como sempre, depende da quantidade de investimento e interesse. O que acontece com frequência é que, uma vez tendo um produto comercializado, o investimento em desenvolvimento de novos produtos diminui, porque o mercado vai ficar dividido. A não ser que exista uma falha real do produto atual, o investimento em um novo produto não é mais tão atraente porque o mercado é menor, a expectativa de lucro é menor.

A pandemia completou dois anos e a ciência, extremamente pressionada, conseguiu dar uma ótima resposta com o desenvolvimento das vacinas contra a covid-19. Como você vê o legado desses dois anos?

O êxito na produção da vacina de uma forma tão rápida não foi graças ao desenvolvimento de agora. Isso foi graças ao desenvolvimento que vem sendo feito há 30 anos. Em 1995 já se fazia vacina de adenovírus. Já se fazia vacina de mRNA em modelos animais. A vacina de DNA, que chegou também a ser testada em pessoas, já foi usada em estudos para HIV.

Então o que faltava foi esse investimento que teve nesses dois anos?

Exatamente. Foi aí que se pegou a tecnologia que tinha sido originalmente feita muitos anos atrás, e continuava evoluindo, mas apenas nos bastidores da ciência. E, quando receberam a injeção grande de recursos, essas tecnologias estavam prontas pra deslanchar. E foi um sucesso. Eu considero que, nesses anos de pandemia, o sucesso é graças ao conhecimento anterior, que foi buscado para uma solução urgente, para resolver o problema de agora. No entanto, ainda falta muita compreensão sobre a doença em si. Por que o jovem não tem tanta doença grave? Por que a doença é tão letal em algumas pessoas e outras sentem tão pouco? É por causa da cepa do vírus? É por causa do background genético da pessoa? Ou é por causa de algum outro fator ambiental? Algum fator do hospedeiro, como infecções prévias? Ou alguma característica específica do sistema imunológico? Isso tudo ainda está em aberto. E é também o conhecimento dessas questões que poderá levar a ser feita vacinas para todos os coronas, remédios eficazes pra evitar a morte etc. Ainda não temos a solução definitiva contra o coronavírus, temos as soluções emergenciais mesmo.

E para responder a essas questões ainda vai ser necessário muito investimento em pesquisa nos próximos anos?

Uma coisa que é importante lembrar: a vacina é da Pfizer porque a Pfizer basicamente comprou uma empresa menor, a BioNTech, que foi fundada no início dos anos 2000. E, até 2020, ela teve investidores que já tinham colocado nela US$ 180 milhões. Para desenvolver a tecnologia, a BioNTech vivia no vermelho, não tinha superávit durante todos esses anos. Era uma uma empresa que vivia graças ao investimento. E, como foram extremamente bem sucedidos nesse projeto, a Pfizer comprou, porque a fabricação e distribuição requerem uma empresa global. Em termos de desenvolvimento de vacinas, as pessoas falam tanto em teorias da conspiração, mas a vacina não é um produto farmacêutico que dá lucro. O que dá lucro é vender remédio pra tosse, pra desentupir nariz, sonda pra intubar, respirador, isso é o que dá dinheiro. Tomar uma dose de Pfizer que o Brasil comprou por US$ 10, não. Quanto gasta uma pessoa doente em casa com sintomas leves de covid-19? É mais do que R$ 50, R$ 60. Se juntar todo o investimento feito na indústria farmacêutica, 97% é dedicado a desenvolver remédio. Só 3% é dedicado a vender, a produzir, a desenvolver novas vacinas. Isso já diz tudo. Vacina é um investimento longo, de grande risco, caro. E que sofre esses preconceitos de alguns grupos sem justificativa. Não há grande interesse econômico em prevenir doenças. O grande interesse econômico é vender remédio, procedimento médico, isso gera dinheiro. E as pessoas esquecem disso. A BioNTech deve ter feito um lucro enorme agora, mas muito justo. São pessoas que passaram 15 anos ou mais investindo numa empresa que não sabiam se iria dar retorno ou não. E um dia teve. E a gente vê também por outro lado. Por que que a gente não tem vacina pra zika? Porque ainda hoje a gente não tem uma vacina para dengue, para esquistossomose ou para HIV? É um investimento mais lucrativo vender antiviral de HIV do que vender uma vacina de US$ 20 pra uma pessoa. Isso é uma mentalidade que precisa mudar. No lado particular, a preocupação é sempre se tem mercado ou não. No lado público, a preocupação não é o mercado, mas a parte política. E no Brasil há um apetite de risco muito pequeno, não há investimento em desenvolvimento de tecnologia local.

É verdade que de todas as vacinas distribuídas pelo SUS nenhuma é com tecnologia brasileira?

Você conta nos dedos as patentes de vacinas brasileiras originais. E nem todas patentes viram produto. O que o Brasil faz são acordos de transferência de tecnologia. O que não quer dizer que, depois que a tecnologia é transferida, não seja adaptada ou evoluída dentro das instituições. A Fiocruz tem um parque grande, um número grande de pesquisadores, mas nenhuma vacina que a Fiocruz produz hoje foi feita ou desenvolvida por um dos seus pesquisadores.

Falta investimento?

É falta de seriedade no investimento. A instituição investe, mas em valores amadores, vamos dizer assim. É mais no nível acadêmico, é um investimento que não tem o cacife pra transformar aquela descoberta da bancada em um produto. Há tentativas, há programas que tentam avaliar, mas é muito pacato, muito discreto. No setor público existe um trauma. Principalmente nas instituições idôneas, do bem: há muito medo de investir dinheiro em uma coisa que não dê certo porque vão ser alvo de críticas, de que foi corrupção, de que foi isso, de que foi aquilo. Então, pra você investir em pesquisa naquilo que você tem certeza que vai dar certo não existe. Por isso que no Brasil se espera o outro fazer, e, se der certo, compra. É menos risco.