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Impulsos da emoção e da gratidão

Bertoldo Kruse de Almeida
Médico

Hoje, nesta Casa Legislativa, a Casa que norteia os destinos dos recifenses, estou vivenciando momentos de júbilo, momentos que me propiciam a generosidade dos seus ilustres integrantes ao acolherem a proposição do Vereador Mozart Sales para conceder-me a Medalha do Mérito José Mariano. Assim, profundamente comovido pela grande honra de recebê-la, movem-me, nesta cerimônia que representa um testemunho valorativo do meu exercício na medicina, no magistério e na administração, os impulsos da emoção e da gratidão, impulsos que me impelem a abrir as janelas da recordação. Inicialmente, vejo-me motivado a ressaltar que tenho a noção exata da grandeza do Conselheiro José Mariano Carneiro da Cunha, em cuja personalidade se conjugavam, na análise de historiadores, os atributos do político militante, do jornalista destemido e do idealista fervoroso.

O acadêmico Orlando Parahym, no ensaio biográfico sobre José Mariano, revela que ele se formou em direito na mesma turma de Joaquim Nabuco e juntos lideraram as ações contra a escravidão no Brasil, iniciadas em 1884. Na visão desse ensaísta, “não sabemos de outro homem público em Pernambuco, que houvesse desfrutado maior simpatia popular, maior prestígio nas urnas, maior irradiação pessoal do que José Mariano. Seu nome, no consenso público, era uma bandeira. Pensamento, palavra e ação harmonizavam-se na pessoa desse provinciano do Partido Liberal. Na coragem do abolicionista. No destemor do homem de Imprensa”. E cita o seu confrade Jordão Emerenciano, ao referir no discurso de posse na Academia Pernambucana de Letras, que “a tribuna de José Mariano tanto estava no Santa Isabel, ao lado de Nabuco, como em qualquer parte, desde a sua casa no Poço da Panela até o Clube do Cupim”. Igualmente significativas as palavras de Nilo Pereira, no prefácio do ensaio de Orlando Parahym: “Podemos imaginar o que foi a notícia da abolição da escravidão enviada por telegrama a José Mariano. Era o sonho, que ardera na sua palavra e no seu gesto, na plena realidade da conquista de um bem supremo – a liberdade do homem”.

Nessa publicação (José Mariano. Recife: Dialgraf, 1976), acentua Orlando Parahym que “as associações emancipatórias tiveram atuação importante na campanha. Alforriavam, defendiam e protegiam escravos. E isso lhes custava muito dinheiro”. Entre as que foram criadas e operaram no Recife, menciona “o famoso Clube do Cupim, ex-clube Relâmpago, na Capunga, fundado em 1884. E dele fizeram parte Joaquim Nabuco, José Mariano, João Ramos, Sebastião Grande de Arruda, os irmãos Guilherme e Alfredo Pinto, Manoel Gomes de Matos, Faelante da Câmara, Barros Sobrinho, Leonor Porto, Vicente do Café e alguns outros”, salientando-se, também, “a extraordinária atuação de dona Olegarinha, esposa de José Mariano, na remessa de escravos fugidos, roubados das senzalas ou alforriados para o Ceará”.

Permitam-me, ao recordar essa época, falar com a voz do sangue, e para tanto recorro às palavras do historiador Carneiro Vilela (O club do cupim. In: Silva, L.D. (Org.) – A Abolição em Pernambuco. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988): “Quem se dispuser a escrever a história do movimento abolicionista em Pernambuco não poderá deixar de estudar largamente o Club do Cupim, e de fazer-lhe o merecido panegírico, porque um dos principais fatores, senão o principal daquele movimento humanitário, foi incontestavelmente esse Clube”. O Club do Cupim era uma sociedade secreta sem estatuto, sendo seu único fim a libertação dos escravos por todos os meios, afirmando esse historiador que “nunca fora dado a uma associação de tal espécie uma denominação mais adequada e sugestiva”, pois “o novo Clube ia trabalhar na sombra a coberto das vistas alheias, e minar carcomendo roaz e minaz, o próprio cerne da nefanda árvore da escravidão”. Para orgulho de minha família, encontra-se na relação dos instaladores desse Clube, Sebastião Grande de Arruda, meu avô paterno, cujo nome de guerra era Mocuripe, descendente de africanos, que nasceu em 24 de dezembro de 1840, na cidade de Aracati, então província do Ceará, e aos 19 anos veio para o Recife. Sebastião Grande de Arruda, Juvenal Machado e Lino Falcão eram os intermediários habituais da comissão executiva para os auxiliares e Carneiro Vilela assinala que compunham “uma trindade de heróis sem rios de sangue, nem aparatos bélicos”, e descreve as múltiplas façanhas do Clube, constituindo a última o embarque, em 23 de abril de 1888, de “uma leva de 119 escravos que desceram à noite do Poço da Panela, da Casa de José Mariano, em uma canoa de capim que Guilherme Pinto conduziu até a Capunga e daí, rebocados por dois botes, indo fundear defronte da casa de banhos, onde passaram para a barcaça que um rebocador, logo pela manhãzinha, foi levar até os confins do horizonte”.

Afortunadamente, no dia 13 do mês seguinte, a Princesa Regente assinou a Lei da Abolição da Escravatura, uma vitória da luta em que se empenhou José Mariano, “um dos mais denodados campeões do abolicionismo, a quem não serviu somente com as palavras nas lides legislativas, mas também com a ação nas sociedades emancipadoras, entre as quais o famoso Club do Cupim, onde usou o pseudônimo de Espírito Santo”. Nesse recuar no tempo, não resisto à tentação de transcrever dois parágrafos da crônica de Célio Meira, na sua coluna “Vida Passada” (Folha da Manhã, edição vespertina de 24 de dezembro de 1940), acerca da participação do meu avô na campanha abolicionista, ao lado de figuras expressivas que lutaram por essa causa. Disse ele: “Enfrentando escravocratas, senhores de engenho, burlando, constantemente, a ação da polícia, disfarçado em cobrador da Padaria Biset, da loja da Viúva Veiga, da Casa João Ramos, dos médicos Barros Sobrinho e Raimundo Bandeira, e do dentista Numa Pompílio, realizou Sebastião Grande de Arruda obra gigantesca em favor dos escravos. Político, vinculou-se, também ao movimento das idéias da democracia e da república. Permaneceu firme, a esse tempo, ao lado de Silva Jardim. Pertenceu ao partido Autonomista, obedecendo à palavra de ordem de José Maria e de José Mariano, o tribuno magnífico dos escravos. Filiou-se, depois, ao Clube Popular, agremiação política à sombra das idéias liberais, pelejando desse modo, ao lado de Paulo Mafra, Aristarco Lopes, Sérgio de Magalhães, Sabino Pinho e de Faelante da Câmara”.

Outra janela que me agrada abrir é das reminiscências afetivas, aquela de onde descortino a paisagem policrômica do Recife, a cidade que foi berço do menino nascido na Rua Nova, então denominada Barão da Vitória, no 2º andar de um sobradão em cujo andar térreo existia uma farmácia. Ainda na minha meninice, aos quatro anos de idade, ocorreu a mudança da minha família para o bairro de Água Fria, que embalou os sonhos da minha infância e adolescência, e aí permaneci até tornar-me médico, em 1948. No ano seguinte fui realizar a pós-graduação em Saúde Pública no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e ao retornar mudei-me para Olinda. São tempos que guardo em meus olhos e no meu coração, tempos em que convivi, diuturnamente, com problemas, aspirações e fantasias; tempos que me estimularam a prosseguir no aperfeiçoamento cultural e técnico-científico, concomitantemente com o exercício profissional; tempos diferentes dos atuais, em que a civilização se volta para a promoção do indivíduo e para o seu enriquecimento. Daí em diante sempre procurei aumentar o meu espectro de conhecimentos objetivos, atrevendo-me a percorrer as avenidas da cultura, sensível à influência de várias correntes do pensamento. Acreditava que o interesse pela leitura podia ser um valioso complemento do exercício da profissão, inspirando interpretações que ensejassem a adoção do cuidado integral do homem, visualizando corpo e alma como um dualismo indivisível; no entendimento de que é indispensável para esse cuidado imbuir-se dos sentimentos de solidariedade e de bondade, e conscientizando-me do ensinamento do filósofo Bertrand Russell: “uma pessoa é racional na medida em que sua inteligência informa e regula os seus desejos”.

Relevem estas regressões, porque após os 80 anos são freqüentes as crises de nostalgia. Às vezes sinto-me envolvido numa atmosfera de devaneios, relembrando os luares recifenses e olindenses, sempre convidativos às serenatas, pois aos encantos da bela Mauricéia, à época metrópole do ensino jurídico e palco de tribunos famosos que pregavam a Abolição, se somavam os de Olinda, onde os campanários das velhas igrejas anunciavam todos os acontecimentos e nos meus pervagares, a atenção flutuava entre o que via e sentia, não me deixando apegar a sonhos. As relembranças da Faculdade de Medicina, no Derby, agora a Casa de Fernando Figueira, na qual o atrativo maior derivava da eloqüência, da elegância e da clareza das idéias de mestres veneráveis e, na galeria de minhas conquistas, a fidelidade à saúde pública e à nutrição, percorrendo vários níveis administrativos e entendendo essa ascenção na carreira docente e na administração pública, principalmente como solicitação para aprender mais e trabalhar melhor. As relembranças dos primeiros estudos em Água Fria, na Escola Almirante Inhaúma, com a profa. Mirandolina Catanho e as aulas de datilografia com a minha tia Dulce; e o trilhar do curso ginasial e do curso pré-médico, no Liceu Pernambucano, dirigido pelo grande educador Pedro Augusto Carneiro Leão, que várias vezes referiu como um episódio singularíssimo, eu cursar o ginasial e meu pai o curso pré-jurídico, no mesmo colégio, ao mesmo tempo.

Destarte, na minha trajetória de vida trabalhei muito e também sofri, porém sofri com a alegria de ter sofrido para o bem. Outrossim, aproximei-me daqueles que orientaram o meu caminho na então Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco: no campo da Nutrição, recordo as figuras de Orlando Parahym e de Nelson Chaves; no campo da Higiene e Saúde Pública, Joaquim e Gilberto da Costa Carvalho. E após retornar do desempenho de quase 11 anos, em Brasília, no Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, aproximei-me de Fernando Figueira, que ditou em Pernambuco os rumos de uma Pediatria Social, propugnador de uma refuncionalização e renovação do enfoque da atenção à saúde da mulher e da criança com sensibilidade humanística. Nesse caminhar aprendi a enfrentar responsabilidades profissionais e procurei ampliar e enriquecer meus conhecimentos, inclusive em agremiações científicas, insistindo para que os companheiros se congregassem visando a influenciar no sentido de melhor agir no campo social e predominasse o bom senso, a fim de não arrefecer o entusiasmo dos jovens, mas animá-los com a juventude do espírito e a palavra ponderada dos mais experientes, e sobretudo com o exemplo, realmente o modo mais eficiente de transmitir valores.

Senhoras e senhores: consciente de ter ultrapassado os limites aceitáveis de tempo em um discurso de agradecimento, peço-lhes um pouco mais de paciência para o imperativo de agradecer. Primeiramente, o agradecimento aos membros desta Câmara e, em especial, ao Vereador Mozart Sales. Destaco, no ilustre proponente, o compromisso em relação às condições dignas de vida para todos, que remonta aos tempos universitários, sempre partícipe ardoroso das lides estudantis voltadas para essa finalidade, ficando o seu comprometimento mais evidente ao tornar-se médico. Então, a melhoria da qualidade de vida das pessoas passou a ser a idéia condutora das suas atividades na política, e com a sua eleição para esta Casa, a luta por mais saúde, mais educação e mais cidadania para os recifenses constitui o eixo central da sua atuação.

Desejo salientar que a alegria desta manhã eu reparto com aqueles que viram em mim a esperança e a continuação. Agradeço aos meus grandes ausentes – a Eupreprio Grande de Arruda, meu pai, e minha mãe, Frida; a Bertoldo Grande de Arruda, meu tio e Dulcinéia Grande de Arruda, minha tia, reconhecendo os seus conselhos, sacrifícios e acima de tudo os valores que me transmitiram. Agradeço aos meus familiares presentes: a minha esposa Vilma; os meus filhos Paulo e Ilma; os meus netos Fernanda, Paulo Henrique e Bertoldo; o meu irmão Alexandre e a minha nora Valéria. Agradeço aos dirigentes e representantes de entidades governamentais e privadas, de associações científicas e de profissionais de saúde, e aos outros amigos que aqui vieram, associando-se à alegria que a todos envolve quando recebo a Medalha José Mariano.

Meus caros amigos: Que poderia eu querer mais nesta fase da minha existência? No âmago do meu espírito já se abriga a lembrança destes momentos preciosos, convicto de que esta distinção não galardoa apenas quem a recebe, também o esforço de muitos que colaboraram para o êxito do trabalho que realizei, sem pretensões de galgar o altar da vaidade. Estes momentos de evocações sinalizam para o que lembra Sergio Paulo Rouanet: “o passado não deve ser visto como um depósito inerte de fatos mortos, e sim como algo de vivo e relevante para o nosso presente”. Finalmente, expresso mais uma vez a minha gratidão recordando, como homenagem ao patrono desta Casa, versos românticos de seu filho, o poeta Olegário Mariano:

“Eu sou um enamorado da vida!
Amo-a por tudo quanto ela me pode dar!
Vida! Quero viver todas as tuas horas,
As que prendi na mão e as que nunca alcancei”.

Discurso de agradecimento ao receber a Medalha do Mérito José Mariano, em 14 de setembro de 2006.