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Nas estradas, meninas trocam sexo por comida

Lagoa Grande, no sertão de Pernambuco, não consegue diminuir exploração sexual de adolescentes

Ela tem 14 anos. Com jeitinho de menina, é educada e se expressa bem. O sorriso desfalcado de alguns dentes é um dos poucos elementos externos que revelam uma vida já marcada por experiências pesadas. Maria (nome fictício) conhece a fome, o sexo em troca de um mimo qualquer. Bala, picolé, às vezes centavos. Já abortou em casa, escondida, com o rádio ligado na altura máxima para ninguém escutar os gemidos causados pelas contrações provocadas por chá forte de ervas.

Como tantas outras meninas e adolescentes de Lagoa Grande, “a terra da uva e do vinho”, no sertão do São Francisco, 22.381 habitantes, 39,9% da população adulta analfabeta, a 655 quilômetros do Recife, Maria se enquadra no rótulo de um dos problemas sociais que desafiam o País: a exploração sexual comercial de menores. Atualmente, o termo prostituição infantil não é mais utilizado.

CAMINHONEIROS

Lagoa Grande é ponto de parada de caminhoneiros. Nela se cruzam as rodovias federais BR-428 e BR-122, que levam ao Norte e ao Sul. As crianças e adolescentes entram para o mundo da prostituição sem consciência. Atendidas pela prefeitura, 34 delas dispõem de uma conquista recente: uma modesta casa batizada de “centro de referência”, onde se reúnem para aprender a fazer bijuteria, artesanato e danças populares, para conversar e participar de dinâmicas orientadas por uma psicóloga e assistentes sociais.

Elas não admitem usar o corpo para sobreviver. Buscam diversão e a realização de pequenos desejos. Questionadas sobre seu estilo de vida, reconhecem fazer “algo errado”. Bebem cachaça, usam drogas, de maconha a crack, até cocaína. O lema é sexo, drogas e forró. A maioria deixou a escola. Têm de 11 a 17 anos. Aos 18, mudam de categoria: são elevadas à condição de profissionais do sexo, prostitutas. Uma escolha, por sua conta e risco.

Agenciamento

As histórias são perversas. Uma menina de 13 anos, ainda sem seios, é supostamente agenciada por um tio. Supostamente porque a família nega, além de discriminá-la. Deixou a escola porque era constrangida pelos estudantes. Uma outra largou a escola porque aceitou dinheiro de colegas. Os meninos se cotizaram para tirar a virgindade de um deles. Depois disso, ela se tornou alvo de chacota e discriminação.

R. mora com os avós, tem 17 anos e cursou até a sétima série. “Escola é muito chato” e “sou alegre porque bebo” foram declarações suas durante encontro com a reportagem. J., mesma idade, fez até a terceira série e confessa não saber ler nem escrever. Com um filho de 2 anos e a marca de uma facada que seu ex-companheiro e pai da criança lhe desferiu no lado esquerdo do queixo, fala com o intuito de chocar: “Bebo cana, vou para onde quero, pago a alguém para ficar com meu filho enquanto estou bebendo”. S., também mãe, se arrepende de ter “pegado bucho” aos 14 anos. Mas continua a perambular numa vida de risco que não a livra de outra gravidez impensada.

Sem dados

O governo do Estado de Pernambuco não tem números da exploração sexual de menores, mas pesquisa da Secretaria Especial de Direitos Humanos e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) indicou 63 municípios pernambucanos com o problema. Lagoa Grande entre eles. Mesmo não citados na pesquisa, outros 38 municípios vivem a mesma situação, de acordo com relatos de prefeituras à Secretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania.

Responsável pelas ações na área do abuso e exploração sexual, Sueli Emília considera a situação “grave”, com exigência “urgente e constante” da presença de intervenções públicas.

Lagoa Grande recebeu destaque pela exploração sexual no relatório final da pesquisa do Conselho Regional de Medicina (Cremepe), que, em caravana, percorreu 104 dos 184 municípios pernambucanos entre 2005 e 2006. Com especialistas de várias áreas da saúde, a Caravana do Cremepe fez um levantamento das condições de saúde e da problemática das regiões visitadas. Para a Secretaria de Assistência Social da cidade, essas meninas e adolescentes exercem o “sexo do R$ 1,99”, em que se trocam por qualquer coisa oferecida.

Da Assessoria de Comunicação do Cremepe.
Com texto de Angela Lacerda, publicado em O Estado de S.Paulo (11.12.2006).