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No rastro da miséria

Caravana do Cremepe revela perfil alarmante das pequenas cidades do Estado: maioria dos habitabntes não sabe ler, não tem água e é mal alimentada

Analfabeto. Agricultor sem terra. Morador de uma casa sem saneamento básico nem abastecimento d’água. Na cozinha, só feijão, farinha, sal e açúcar. Essa é a descrição da maioria dos pernambucanos encontrados nas cidades com menos de 30 mil habitantes percorridas pela Caravana do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) nos últimos quatro anos. A iniciativa da entidade visa conhecer as condições de saúde dos 184 municípios de Pernambuco. No último dia 28, os integrantes do projeto encerraram as visitas em Frei Miguelinho, no Agreste, e realizaram uma radiografia do cotidiano do Estado.

No primeiro ano (2005), a caravana esteve em 60 cidades, no ano seguinte, em 42, em 2007, foram 45 e, este ano, 37. As piores condições foram encontradas na edição de 2008. Carnaubeira da Penha e Mirandiba, cidades vizinhas no Sertão, concentram uma miséria gritante.

Denizal Francisco do Nascimento tem 23 anos. Ele mora na zona rural de Mirandiba, a 475 quilômetros do Recife. Quando a caravana passou por sua cidade, no início de março, Denizal perambulava pela feira tentando ganhar algum trocado para comprar o leite das crianças. Na casa do agricultor não há banheiro. Seus dois filhos, de 1 e 3 anos, não foram registrados. Os meninos têm crises de diarréia freqüentemente. “Eu também não tenho documento. Só o título (de eleitor) porque um vereador me ajudou”, contou Denizal.

A violência contra a mulher também chegou à região. No dia 28 de fevereiro, a agricultora Lucivânia Gomes da Silva, 24, foi assassinada pelo marido Everaldo Carvalho Moraes a pedradas. Quando a caravana esteve na cidade, a população realizava um protesto diante da delegacia e do fórum. “Havia um boato de que o acusado seria solto. Fizemos uma manifestação para cobrar explicações da polícia e da Justiça”, disse a coordenadora do Movimento de Mulheres de Mirandiba, Maria Pereira. O acusado do assassinato está preso e o inquérito já foi concluído.

A história de Lucivânia e Denizal e as condições de vida da população pobre do interior são recorrentes nos registros da caravana. Mesmo tendo percorrido todos os municípios de Pernambuco, foi nas pequenas cidades que a ação encontrou problemas que pareciam restritos ao Grande Recife.

A reportagem do JC acompanhou o trabalho do Cremepe, em parceria com o Sindicato dos Médicos, em 17 cidades do Sertão, durante seis dias. Exploração sexual de crianças e adolescentes, mendicância nas ruas, falta de acesso asfaltado aos municípios, educação e saúde precárias eram pontos comuns e fáceis de constatar.

DROGAS

Em Tuparetama, a 400 quilômetros do Recife, o álcool é um problema entre os adultos. O crack é conhecido dos jovens e a exploração sexual acontece em bares próximos ao Centro da cidade. “Aqui todo dia que tem feira (às segundas-feiras), os homens vêm logo cedo para o bar. Só tem menina nova. Elas sobem na mesa, dançam e fazem sexo por R$ 10”, revelou um agricultor da cidade que levou integrantes da caravana ao estabelecimento.

Não só de maus exemplos se constituiu o levantamento. Em Carnaíba, cidade de 18 mil habitantes e distante 325 quilômetros do Recife, o projeto encontrou provas de que é possível dar um tratamento digno à população carente. Os professores recebem um salário de R$ 1.300, o hospital tem capacidade para atender doentes até de outras cidades e há uma escola de música com alunos de 5 a 60 anos.

ENTREVISTA » RICARDO PAIVA
“Temos uma legião de jovens sem perspectiva”

O cardiologista Ricardo Paiva foi o idealizador da Caravana do Cremepe quando assumiu a presidência do conselho em 2005. Inicialmente, parte da categoria foi contra o trabalho, achando que extrapolava as atribuições do órgão. “Hoje, a caravana é reconhecida como uma ação fundamental. Tenho certeza de que todos os que participaram do projeto, hoje são profissionais e, sobretudo, seres humanos melhores.”

JC – Como foi organizar e realizar a primeira fase da caravana em 2005?
RICARDO PAIVA – A idéia era não só fiscalizar as unidades de saúde, mas levantar informações sobre outros pontos que contribuem diretamente para o bem-estar da população como educação, saneamento e lazer. Uma parte da categoria achou que o conselho não deveria se meter nisso. Contudo, hoje a iniciativa está consolidada e foi adotada pelos conselhos do Ceará, Distrito Federal e Paraná.

JC – Quais profissionais participaram da caravana e como era o trabalho nas cidades?

PAIVA – Procuramos chamar pessoas de várias profissões e estudantes para compor as equipes. Ao chegar a uma cidade, uma parte do grupo ia conversar com o prefeito, outra aplicava um questionário sobre o SUS ao secretário de saúde, fiscais iam à unidade hospitalar, outra equipe se reunia com os conselhos de saúde e tutelar e uma quinta turma fazia pesquisa de rua. Com isso, tínhamos um bom retrato de cada município.

JC – O senhor participou de todas as fases do projeto. Das 184 cidades pernambucanas o que mais lhe chamou atenção?

PAIVA – Divido os problemas em três eixos que precisam ser enfrentados pelas autoridades. Primeiro: saneamento e água. Sem resolver isso, vamos continuar convivendo com doenças em nosso Estado que Euclides da Cunha descreveu em Os sertões. Depois, o foco é na educação. Com professores ganhando um salário mínimo, desmotivados, escolas sem estrutura e sem merenda e ainda tendo os alunos transportados como gado, não vamos formar novos cidadãos. Em terceiro, há a questão da geração de renda e do lazer. Temos uma legião de jovens sem perspectivas. O bolsa-família é melhor do que nada, mas é uma fábrica de mendigos. Quem recebe deveria prestar algum tipo de serviço, para não tornar o pagamento uma esmola.

JC – A caravana mudou sua maneira de pensar?

PAIVA – Todos nós mudamos com essa experiência. Definitivamente, nos tornamos profissionais e seres humanos melhores.

Da Assessoria de Comunicação do Cremepe.
Reportagem: Eduardo Machado, do Jornal do Commercio (emachado@jc.com.br)
Publicada em 06.04.2008, editoria de Cidades.