A consciência está tranqüila e a sensação é de dever cumprido. Não é todo mundo que pode dizer isso ao final de dois anos e meio à frente de uma entidade com meio século de atuação e que representa mais de 10 mil profissionais no Estado. Mas é assim que o médico Carlos Vital Tavares Correia de Lima define seu estado de espírito ao deixar a presidência do Cremepe. A passagem de cargo está marcada para o dia 30 de setembro e desde já ele faz um balanço de sua gestão e fala das lutas e conquistas do Conselho diante de temas como o exercício ilegal da profissão, a mercantilização da medicina, o caos dos hospitais públicos e o financiamento precário da assistência à saúde no país.
Há anos tramita no Congresso Nacional a regulamentação da Emenda Constitucional 29, que no seu formato original poderia amenizar os problemas de financiamento da saúde pública no Brasil. Como o Cremepe avalia as alterações pelas quais passou a emenda nos últimos dois anos e meio?
Olha, juntamente com as entidades nacionais, representadas na área da saúde pela Fenam (Federação Nacional dos Médicos), Conselho Federal de Medicina e Associação Médica Brasileira, o Conselho Regional de Pernambuco tem participado dos fóruns no Senado, na Câmara dos Deputados e em seminários sobre a regulamentação da Emenda 29. É uma aposta significativa em um aporte de verba que não será solução para os nossos problemas de saúde, mas que certamente minimiza as nossas dificuldades de investimento nessa área. Mas, infelizmente, a partir da ultima decisão tomada a respeito do fato pela Câmara dos Deputados, nós voltamos praticamente ao início dos avanços no processo de regulamentação da emenda. A Câmara dos Deputados pegou um projeto que foi aprovado no Senado e simplesmente distorceu todo o projeto. Hoje as áreas onde se considera que haja aplicação de verba de saúde foram modificadas, abriu-se um leque muito grande e, naturalmente, permitindo – dentro do que se propõe a Câmara dos Deputados nas suas reformulações no projeto do Senado – aplicar verbas em áreas que não são absolutamente áreas de saúde, criando-se, inclusive, outra contribuição para substitutivo da CPMF, o que também não é coerente, confusões históricas das próprias casas legislativas e recém tomadas. Os percentuais foram diminuídos, alargados prazos de incrementação desses percentuais. Ou seja, transformou-se essa emenda em mais uma colcha de retalhos, de forma que não é algo que venha ao encontro das nossas necessidades, dos nossos objetivos. É lastimável, por que isso ocorre, infelizmente, em um processo de trocas por questões políticas partidárias de causas menores, tão comuns nessas casas onde se instituem as leis que regulam a vida social.
O que o senhor acha deveria ser feito a partir de agora, já que a situação está nesse estágio?
A partir de agora acho que cabe mais uma vez à sociedade civil organizada, às representações de classe, sobretudo, voltarem às pressões políticas necessárias, perseverando na luta realmente por uma Emenda 29 coerente com as necessidades de investimento na área da saúde. Só nos resta manter firmes na crença de que não se pode desistir. Os valores que estão em jogo são bens supremos para a vida e a saúde e não há como aceitar derrota nesse campo de luta e idealismo, eu diria, tão condizente com direitos humanos e com os fins básicos da existência de um Estado, com as necessidades mais básicas da sociedade. É um caminho que se tem de tomar. Temos que continuar lutando, não perder as esperanças, até porque se isso é utópico, depois de tantas e tantas derrotas, lembra-se aqui que a utopia nos permite caminhar.
O Cremepe esteve engajado em outras lutas mais pontuais nestes dois anos e meio, como por exemplo as questões do Hospital da Tamarineira e do Hospital do Câncer. Como o senhor avalia esse engajamento e os resultados obtidos?
Em muitas lutas, os resultados são exitosos. Em outras, nem tanto. Mas o importante é estar atento e continuar fazendo o belo papel da instituição em prol da sociedade e não só numa forma específica, no ético exercício da profissão médica, mas também em todos os fatores que se inter-relacionam com esse exercício. Ou seja, no índice de desenvolvimento humano, nas evoluções filosóficas e também nas modificações de planejamento, de gestão política, de mudança social como um todo. Essas circunstâncias, por exemplo, da transformação do Hospital da Tamarineira, da reforma do Hospital Pedro Segundo, promovida hoje pelo IMIP, evitando que aquele centro histórico de caráter hospitalar fosse transformado em um grande Shopping Center, ou qualquer coisa na área comercial, são vitórias significativas da sociedade, da classe médica. Mas são aspectos pontuais, o grande processo mesmo é realmente lutar pela dignidade humana, por que hoje isso é um mister do médico tão importante quanto a manutenção da vida e da saúde. Não basta apenas viver, não basta apenas ter saúde. É fundamentalmente necessário para o ser humano ter dignidade, e passou a ser um mister fundamental no exercício da medicina.
No caso específico do Hospital do Câncer, o senhor acha que a intervenção foi algo que de fato trouxe resultados para aquela instituição?
Bem, sem dúvida, eu acho que no momento em que foi feita a intervenção não havia realmente outro caminho. Isso foi um pleito inclusive das entidades médicas, um antigo pleito, e foi assumido nesse governo de Eduardo Campos. Esse é um reconhecimento que nós temos que fazer. A política de câncer no Estado inexiste, inclusive esse é um aspecto também de base, fundamental. Nós temos carências de muitas políticas em áreas especificas da saúde que são fundamentais como, por exemplo, esta do câncer. Também não temos uma política de hematologia, uma política de sangue. Nós temos hoje absolutamente um sistema inadequado por atendimento a população. Foi realmente uma intervenção necessária para sanear aquele hospital, onde se concentra ainda hoje a grande parte do atendimento ontológico. Começa agora a se ter uma distribuição desse atendimento. Então, hoje já se desenvolveu centros de oncologia nas Clínicas e no próprio IMIP, que tem convênios com o Estado. Começa a se formar o embrião de uma política oncológica. Mas, no momento daquela intervenção, historicamente até ali, não havia política de oncologia nesse Estado de Pernambuco. Então era preciso haver intervenção, era preciso sanear o hospital que estava na falência.
O senhor é otimista em relação ao caminho que está sendo tomado a partir agora?
Eu tenho reservas. Eu não sou cético, mas não posso traduzir meus sentimentos como otimistas. Acho que há esperanças de que nós possamos, depois de tantas idas e vindas, e pensamentos e reflexos e de nortes políticos, entendermos ao fim de que realmente é preciso acabar com essa guerra civil que existe na assistência à saúde pública, como em outras áreas da vida social deste país. Esse projeto da segurança pública, essa guerra civil que existe na área de segurança pública e que todos já reconhecem, que salta aos olhos, ela se estende também, de maneira muito clara, na assistência à saúde. Nós temos serviço de campanha na área pública, onde falta tudo ou quase tudo. Faltam recursos humanos, faltam drogas, aparelhos. Falta estrutura física e é muito difícil de você ter um atendimento que possa ser colocado como digno da condição humana. Os médicos sofrem quase tanto quanto os pacientes, adoecem, abandonam serviços, pedem demissão, são aviltados de forma absolutamente insustentável em termos de manutenção da sua própria vida, das suas necessidades econômicas. Trabalham em plantões que se desdobram um após o outro, tentando inclusive ter uma condição econômica mínima que permita uma sobrevivência. Não conseguem atualizações, reciclagens. Não podem investir na continuação da sua educação profissional e vivem frustrados, assumindo responsabilidades imensuráveis. Os valores aos quais se destinam seus cuidados são obviamente compreendidos por todos, é manutenção de vida, repito, de saúde, e a responsabilidade é muito grande, civil, administrativa, ética, criminal. Apesar disso, sem condição econômica, eles são submetidos a atendimentos numerosos, incompatíveis com a responsabilidade, com a qualidade dessa assistência.
O Cremepe tem fiscalizado hospitais públicos e privados?
Fiscalizamos o exercício da medicina não só em hospitais, mas em qualquer entidade, em qualquer âmbito que esse exercício se faça presente.
E qual é o cenário encontrado?
Na área pública já foi relatado: um caos, sem dúvida nenhuma, um caos e isso é um status quo, isso vem de muito tempo. Eu digo com toda a convicção de que nesse país nunca se investiu de forma adequada na assistência à saúde. Houve época em que, por uma questão apenas de menor desenvolvimento tecnológico, por outros parâmetros da medicina, existia uma clinica privada, mas naqueles momentos também havia dificuldades certamente para uma grande parte da população que não conseguia se quer o acesso. Hoje essa população tem o acesso, mas o acesso ao caos. Se fizer um raciocínio simplório, com certa clareza você observa: na Constituição de 88 – está lá no artigo primeiro – a dignidade humana é um lastro do estado democrático de direito; ora, na assistência à saúde pública não há condição para preservação da dignidade humana – o que é fato documental com imagens veiculadas por toda a mídia nacional – ; se não tem dignidade humana na área de saúde pública, eu também não tenho estado democrático de direito. É um corolário muito simples. Então, isso vem, eu diria, dos Alcântara, passando pelos Cardoso até os da silva. Ou seja, está na história desse país, onde a saúde é função da economia, ao inverso do mundo civilizado, onde a economia existe em função da saúde, dos direitos humanos, da preservação da vida. São bens supremos protegidos pela ordem estatal, protegidos aqui no Brasil teoricamente, por que a realidade é essa que nós estamos aqui criticando e lastimando.
E nos hospitais privados?
Os hospitais privados trabalham hoje, na imensa maioria, com contratos com as chamadas operadoras de planos de seguros de saúde. Os elevados custos financeiros assistenciais tornaram inexorável a intermediação da medicina. Os hospitais fazem esses contratos com as operadoras e, como intermediadoras, essas operadoras procuram o lucro. Então, há também uma circunstância de usurpação dos valores profissionais, dos honorários médicos. A lei 8078, de 1990, elogiável sob aspectos diversos, o chamado Código de Defesa do Consumidor, colocou a partir dali, daquele ano, o médico sob sua égide e adotou-se desde então uma linguagem própria ao trato mercantil para designar as relações humanas estabelecidas na área da assistência à saúde. Os médicos passaram a ser chamados de prestadores de serviços, os pacientes foram nominados de usuários, a área do labor passou a ser conhecido como mercado e os contratos estabelecidos foram cognominados de pacotes. Uma linguagem, digo, clássica de trato mercantil, mostrando-se, a partir daí, pelo valor da palavra, que se entendeu a medicina como comércio, a medicina como consumo. Os bens supremos aqui relatados vide saúde passaram a ser bens consumeristas. E atualmente as distorções se desdobram. A especulação da indústria e do comércio com o ato médico, a propagando enganosa, em síntese, uma série de circunstâncias nefastas de atitudes incompatíveis com os compromissos hipocráticos tornaram-se comuns. Isso, na área privada, vem trazendo grandes transtornos, invertendo valores e eu não poderia dizer que é o terreno desejado pelos médicos.
Dentro desse quadro, como se situam então os movimentos da classe por melhores salários e melhores condições de trabalho?
Nós temos velado pelos direitos dos médicos – porque, inclusive, isso é determinação da lei 3268, de 1957, que criou os Conselhos de medicina – de maneira explicita e interpretação filológica na lei que é também missão do Conselho zelar pelos direitos dos profissionais médicos. E nós fazemos isso sem em nenhum momento duvidarmos que a instituição pertence à sociedade. Naturalmente que o zelo pelo direito do médico é exercido em prol da sociedade, porque um médico desprotegido, sem condições e, óbvio, fragilizado, não vai ter condições de oferecer a segurança necessária ao ato profissional. Por conseguinte, isso pode vir em detrimento dos valores sociais que estão postos. Então, nós temos unido grandes trabalhos nessa área, apoiado o sindicato dos médicos em todos os momentos em que há uma necessidade, em que há naturalmente a inserção da justiça nas reivindicações, o que ocorre praticamente em todos os momentos, haja vista todos esses fatores aqui já elencados, de maneira que essa é uma das áreas onde o Conselho tem se desdobrado de maneira muito intensa e dispensado muitos esforços.
Vez por outra, surgem em Pernambuco pessoas atuando ilegalmente como médicos, inclusive no próprio setor público. Esses casos estão mais evidentes por uma maior fiscalização das entidades ou porque, de fato, aumentou o número de pessoas que insistem em se passar por médicos?
Eu acho, óbvio, que com fiscalizações, com a procura, você encontra mais as circunstâncias de delito como estas do crime, do exercício ilegal da profissão médica. Mas acho que também houve uma forma de maior inadequação entre a demanda assistencial e a oferta de profissionais. Ao mesmo tempo, houve alguma dificuldade maior por parte dos gestores, sobretudo dos municípios menores, promovida pela lei de responsabilidade fiscal, dificultando contratação de recursos humanos, ao optarem por contratos inidôneos, onde os pagamentos seriam muito menores e às vezes até contabilizados de forma equivocada para a contratação, então maior, desses criminosos que fazem o exercício ilegal da medicina. Isso é um ponto.
E abriu espaço para isso?
Abriu um espaço. Acho que a dificuldade de contratação de recursos humanos, por esses fatores orçamentários e legislativos, abriu espaço. Porque não é raro você encontrar – pelo contrário, é muito freqüente – o exercício da medicina de forma ilegal dentro da área de serviço público. Muito freqüentemente, nos municípios interioranos. Nós já tivemos oportunidades de pedir ao Tribunal de Contas do Estado, inclusive, espaço na reunião periódica que ele promove com o Conselho Municipal de Saúde para irmos apresentar a realidade que se encontra aos secretários de saúde municipais, alertar-los da gravidade dos fatos e pedir que em nenhum momento haja uma conivência do gestor com esse tipo de crime.
A interiorizar das ações do Cremepe não seria também uma forma de coibir essas práticas?
As ações do Cremepe são interiorizadas através de representações de três delegacias. Nós temos delegacia em Petrolina, em Caruaru e em Serra Talhada, que é mais recente e que foi inclusive substitutiva da delegacia de Arcoverde. Caruaru, mais próxima, já supria aquela região [do Agreste], mas nós tínhamos carência muito forte na área do Sertão, uma área mais extensa. A distância [é] muito grande entre Petrolina e Serra Talhada, e havia necessidade daquela região ser privilegiada com uma delegacia. Não podemos abrir uma quarta no momento, por questões obvias de limites financeiros e orçamentários, e [por isso] o Conselho fez a transferência da delegacia de Arcoverde para Serra Talhada.
Mas tem as representações?
Temos, isso é um programa que é desenvolvido à medida que há uma condição orçamentária necessária suficiente ao fato. Bom, acho que as representações nossas se associam. Nós temos vários representantes que, óbvio, não têm a estrutura de uma delegacia para trabalhar, mas eles são também profícuos, são também colaboradores e contribuem muito com o trabalho conselhal nas regiões mais distantes, nos municípios interioranos, na Zona do Agreste, na Zona da Mata. De forma que há braços de longo alcance do Conselho. Precisamos ter cada vez mais uma ação efetiva dentro dessa distribuição, dessa delegação conselhal. Mas isso é um processo que depende dos investimentos e que tem que ser feito dentro de programações ao longo do percurso. Agora, é importante lembrar aqui um ponto, exatamente voltando à medicina como um comércio, por que isso também se reflete, não só na área privada, mas na área pública. É interessante, por que o Código de Defesa do Consumidor exclui da sua égide os advogados? Os compromissos dos advogados são os mesmos compromissos dos médicos, são compromissos de meios e não de fins. Mas os advogados, por terem estatuto, que tem status de lei, lei específica, estão fora, não estão sob o alcance do Código do Consumidor. Os médicos estão. E porque essa importância de se analisar a pertinência do inserir médicos sob a ótica do Código do Consumido? É simples: o Código do Consumido é um código avançado, repito, elogiado; é até mesmo um código de princípio, um código ousado, no bom sentido da ousadia, mas contraria dois mil anos de direito romano quando explica como regra geral a teoria objetiva para a responsabilidade civil. Ou seja, para haver uma obrigação indenizatória por algum dano provocado, não há necessidade da presença do instituto da culpa, basta haver uma relação de nexo causal entre o dano e o ato profissional, independentemente de comprovação de culpa. Essa é a responsabilidade objetiva. Ela é reservada no Código do Consumido às pessoas jurídicas. Aos profissionais liberais, como regra de exceção, mantém-se a responsabilidade subjetiva, que depende da presença do instituto da culpa, tradição milenar de direito romano. Só que esqueceu o legislador quando inseriu os médicos dentro do Código do Consumido como prestador de serviço de que a imensa maioria dos profissionais do país, médicos, trabalham, exercem a sua profissão, sem direito à legitima identidade laborativa, por uma compulsória e estranha metamorfose de pessoa física a jurídica, imposta pelas operadoras de planos de seguro de saúde. Se o médico quiser ter um contrato com um plano de saúde, ele tem que tirar o CGC, porque não contratam mais pessoas físicas. É um CGC absolutamente simbólico, mas ele tem que ter um cadastro de pessoa jurídica, assumindo, portanto, a responsabilidade subjetiva. Por outro lado, também esquece o legislador que a natureza da profissão médica em si, em sua essência, não é uma natureza primariamente de risco. A responsabilidade objetiva ela tem gêneses, ela teve a origem numa teoria jurídica chamada teoria do risco. Quando você oferece o serviço, oferece um produto, e esse produto trás algum risco, você passa a ser responsável pelo risco que ele trás. Independentemente de culpa, você terá a obrigação, se esse produto ou serviço provocar um dano, de indenizar, porque a culpa já estaria implícita no risco, teoricamente, que o produto trás potencialmente. Só que na medicina não se aplica a teoria do risco, o risco já vem com a doença que o paciente trás e que exige inexoravelmente a atitude do médico para tratar, diagnosticar a doença. Não é trazido risco pelo exercício da medicina. O risco já vem com a doença, eu repito, que o paciente trás e, portanto, não se pode aplicar a teoria do risco. De uma maneira genérica, à pratica medica, seria querer transformar o médico em Deus, ou seja, fazer com que o médico assuma o compromisso de resultados. Hipócrates tomou a medicina dos deuses há 1.500 anos antes de Cristo e entregou aos homens para ser exercida no terreno da razão. É devolver a medicina aos deuses, obrigando o médico a curar sempre o doente, a salvar-lhe a vida, como se fossem deuses. A partir daí começa a confirmar-se, mais uma vez, as previsões de Esculápio de que os seus discípulos seriam julgados pelas causalidades do destino, e nos banquetes judiciais das ações por perdas e danos. Essa é a nossa realidade, a realidade do exercício médico nesse país é de holocausto.
Com relação à formação do médico, como o Cremepe analisa a abertura de novas faculdades de medicina, como a de Garanhuns, inaugurada recentemente?
Esse é outro âmbito de preocupação. Há muitos anos que há também uma autorização absolutamente sem critérios. Nós somos hoje o segundo país do mundo em números de escolas medicas, só perdemos para a Índia. Estamos muito acima do que preconiza a Organização Mundial de Saúde na relação médico per capita. As escolas proliferaram sem qualidade, voltadas absolutamente ao lucro, através das interferências políticas. Há muitos anos que se autoriza abertura nas escolas absolutamente sem qualidade para o ensino da medicina. Essa uma realidade e as entidades médicas lutam muito contra isso. Agora, óbvio, que as forças políticas são muito fortes, grandes, e as lutas são muito intensas. Mas agora, recentemente, surgiu uma portaria do MEC com uma luz no fim do túnel, mostrando que se chegou ao bom senso. E há necessidade, a partir daqui, para a autorização de escolas médicas, de que elas tenham um hospital próprio ou conveniado, com complexidade terciária, para que possa realmente ofertar estágios e compor bem o programa de graduação do estudante de medicina.
E quanto à Faculdade de Medicina de Garanhuns?
A questão de Garanhuns, particularmente, ela remete-se a um instituto, o Instituto Tocantinense. É uma fundação do Estado do Tocantins, fundação privada, que quer colocar, em outro Estado, uma escola de medicina em uma região onde você não encontra um hospital que tenha condição de servir como campo do estágio e de preparo para o exercício da medicina. Esse processo vem através de mecanismos ilegais, porque há nas leis de Diretrizes e Bases da Educação, na legislação, uma brecha, um espaço, para a autorização de escola de medicina sem tramitação pelo Ministério da Educação. Mas ela é apenas essa: uma universidade estadual que tem escola de medicina e que quer abrir um campus avançado no próprio Estado, esta universidade do Estado poderá, através de um parecer do Conselho Estadual de Educação, ter autorizada a abertura dessa escola, em município interiorano ou não, ou de região metropolitana, do seu Estado. Mas tem que ser uma universidade do Estado abrindo no próprio Estado, num campus avançado da universidade, uma escola de medicina que já existe. Isso não acontece com o Instituto do Tocantins, que é de outro Estado. E tem que ser entidade pública. [O Instituto do Tocantins] não é uma universidade pública, é um instituto, é uma fundação privada, e é de outro Estado, e o nosso Conselho de Educação deu um parecer favorável e que agora se transformou em uma portaria do próprio Conselho de Educação, publicado no Diário Oficial do Estado, sob responsabilidade da Secretaria da Educação, autorizando e permitindo que se instalasse e começasse a funcionar a escola de medicina e Garanhuns, que é escola do Itepac.
E o Cremepe ainda tem atuando nesse caso?
Não mais, inclusive (…) porque nós temos aqui pareceres jurídicos apresentados pelo MEC e temos todo um processo de ordem jurídica desenvolvido. Apresentamos a denúncia juntamente com a Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Pernambuco, a ABEM, Associação Brasileira de Ensino Médico, aqui representado pelo Dr. Milton Arruda, que inclusive assinou a própria peça de denúncia, e a Academia Pernambucana de Medicina. (…) A partir daí essa ação não mais nos pertence. O Ministério Público Federal apresentou sua queixa à Justiça, desenvolveu uma ação, juntamente com a AGU, a Advocacia Geral da União, atendendo inclusive a representação do MEC. Hoje isto é uma ação promovida pela Advocacia Geral da União e Ministério Público Federal. Houve então uma ação de caráter liminar, que foi definida depois de agravo de instrumento, sustou e em seguida houve uma retificação, pelo próprio juiz substituto, o desembargador que emitiu a sentença liminar, e eles entram com o agravo regimental, que deverá ser julgado oportunamente, mas por enquanto a gente espera por uma retificação da sentença dada acatando-se o agravo de instrumento impetrado pelo instituto. Então, ou seja, está na seara jurídica, na seara da disputa judicial, e eu espero que realmente o final seja de reconhecimento pleno de que o princípio da legalidade está ferido com esse tipo de processo de tramitação, de autorização. Isso contraria interesses vários, uns legítimos, outros não. Contraria interesses legítimos do município de ter uma escola de medicina. Óbvio que isso é bom, e que se possa abrir em Garanhuns, tramitando pelo MEC, dentro da lei e da ordem, uma boa escola com qualidade de ensino, que se façam convênios com hospitais, até que sejam distantes de Garanhuns, mas que tenham um convênio com um hospital de complexidade terciária, que possam então esses alunos, que ali vão cursar medicina, ter a oportunidade de um bom estágio curricular e que se possa, óbvio, estar aí afirmando essa autorização pelo devido processo legal. [Que] não se usem subterfúgios, caminhos inidôneos, ilegais para a abertura da escola e que ao mesmo tempo se tenha uma escola com qualidade de ensino. Isso é o dever justamente do Cremepe. Nós não somos contra a abertura de escolas de medicina, apesar dessa quantidade de escolas que existem. Nós somos a favor é que se fechem as escolas que não têm condição de ensino, e que se abram escolas com qualidade. Essa é a nossa posição. Então, em princípio, o nosso norte é a qualidade do ensino da prática médica.
Qual o posicionamento do Cremepe com relação à prática da auto-hemoterapia, bastante difundida atualmente?
Esse posicionamento do Conselho tem que ser necessariamente coerente com a posição do Conselho Federal, porque é uma questão de ordem técnica, eminentemente técnica, tem parecer do Conselho Federal. [Trata-se de um] engodo. Não tem absolutamente respaldo científico. Faz parte de uma panacéia, e em um país com 68% de analfabetos funcionais tem tudo para prosperar.
Nos últimos cinco anos, o Cremepe promoveu quatro caravanas pelo interior do Estado. Como é que o senhor avalia esse trabalho e a realidade encontrada nessas viagens?
Nós tivemos, na realidade, desde 2005. Começamos a desenvolver um programa ainda na gestão de Ricardo Paiva, que teve a idéia de um programa que se intitulou de caravana do Cremepe. É na verdade uma única caravana, não chamaria de quatro. Essa caravana apenas é periódica, mas é a mesma. Ela tem intervalos, descansos. Os caravaneiros descansam um período e depois retornam ao mesmo processo. Então, é um programa social de reconhecimento, diagnóstico, da realidade de índice de desenvolvimento humano das nossas regiões interioranas, sobretudo, mas dos municípios pernambucanos como um todo. Tem foco na área da saúde, mas todos aqueles fatores que fazem parte do IDH são analisados: renda per capita, perfil econômico, saneamento, educação, segurança, ou seja, tudo que compõe na verdade uma variação de IDH é alvo de estudo e de investigações dentro desse processo da caravana.
O senhor acha que houve avanço ou retrocesso, entre uma viagem e outro?
Muito freqüentemente nós encontramos a mesma situação antes reconhecida. E eu coloco reconhecida porque já tínhamos a oportunidade de ter visto em outros períodos. A permanência dessa situação é um lugar comum. Um pouco de maior gravidade em determinados pontos e algumas melhoras em outros pontos. Em média, nós não tivemos grandes diferenças. A situação realmente é complexa. Nós temos ai problemas como sempre de ordem econômica e cultural a serem enfrentados. As políticas de desenvolvimento nesse país não contemplam as reais necessidades. Nós temos programas de política que têm eminentemente caráter clientelista e paternalista, que não liberta, minimiza temporariamente, transitoriamente, e vincula homem ao poder político existente, porque passa o homem a ser dependente até para a sobrevivência, mas não há liberdade sem os programas, não há o projeto de permitir uma auto-realização pessoal, que é fundamental ao verdadeiro desenvolvimento da humanidade. Então, esse é o nosso entendimento. Isso não é, eu diria, uma questão que eu possa reservar a atual política de Estado nesse país. Isso é um processo, com maior ou menos intensidade, como eu até antes coloquei, que veio na história da política brasileira. O que nós vemos aqui é exatamente isso: dos Alcântara, passando pelos Cardoso, chegando aos da silva, com mais e menos intensidade. Não tem muita diferença, é o clientelismo, é o paternalismo. Houve no período anterior, recém anterior aqui ao governo atual, algumas luzes de mudança de postura ideológica, como por exemplo algumas implementadas pela esposa do presidente Fernando Henrique Cardoso, dona Ruth Cardoso. Ela teve alguns lampejos de norte de liberdade dentro dos programas governamentais, nortes de liberdades ao homem, de projetos que pudessem libertar o homem. Mas fora, isso, aqui e ali, você encontra alguns aspectos assim, mas a regra geral é essa: o clientelismo como forma de manutenção do poder e nós vivemos assim. Esse país, eu acho que se você discutir filosoficamente a sua realidade sociológica, você observa que sempre viveu em ditadura. Seja pela pedagogia dos canhões ou da corrupção, mas sempre viveu em um processo ditatorial, manifesto por diversas formas. Sociologicamente, eu acho que não há muitas mudanças, a ideologia política permanece.
A prostituição infantil no interior de Pernambuco é um problema sempre evidenciado pelas caravanas. Há alguma atuação específica do Cremepe direcionada ao problema?
Nós temos um programa já específico, inclusive com peça teatral, tentando fazer a exposição de doutrinas contra uma prática absolutamente, eu diria, chocante, uma prática que denigre a condição humana. Há reiteradas denúncias às instâncias competentes, às autoridades que se envolvem com o combate à prostituição infantil, e nós apresentamos os dados estatísticos encontrados nos diversos municípios do interior. Mas é problema muito grave que assola o país e que tem aqui uma prevalência realmente maior por conta, sobretudo, da pobreza, se níveis sócio-econômicos mais baixos. É lastimável. Em algumas regiões, nós temos coisas que são muito fortes, muito graves. Por exemplo, chegar até a fazer parte da cultura. Muitas vezes é o padrasto o primeiro estuprador da menor. Às vezes, o próprio pai. É a cultura de que eu sou o dono da minha filha e ela é para ser usada, [que] em alguns segmentos existe. Nós encontramos coisas assim dantescas que a própria ficção não criou. Ai aquela velha frase: ficção imita a realidade. Nós estivemos no mais baixo índice de desenvolvimento humano no país, que é Manarí, e lá nós encontramos uma circunstância que serve como exemplo desse grande problema. Era adolescente com dois filhos portador de especificidade e que tinham um só individuo como pai e bisavô. Ou seja, o avô estuprou a neta, teve dois filhos e dois filhos com especificidades físicas. Esse homem tinha falecido uns meses antes de nós passarmos no município e essa adolescente estava ai se prostituindo para poder sustentar aqueles filhos que inclusive portadores de especificidade requerendo cuidados especiais.
Essa história está no livro editado pelo Cremepe (“Severina, que vida é essa ?”) ?
Isso está pelo menos no preâmbulo que tive a oportunidade de escrever. Esse país é muito complexo. Se você me perguntasse qual a frase que identificaria esse país, eu diria para você: é o país de Lázaro. Porque é o país que tem o maior número absoluto de casos de lepra no mundo. Nós temos 22 países no mundo que concentram 80% dos casos de tuberculose e o Brasil é um deles. Recife é a cidade de maior índice de filariose do mundo. Hoje nós temos epidemias erradicáveis desde os tempos de Oswaldo Cruz, o dengue, por exemplo. Ou seja, é complicado. Isso é notório, isso é conseqüência absoluta da falta de investimento em saúde e em educação. Porque você não educa para não perder poder. Porque na hora em que eu educar, verdadeiramente, (…) que investir em educação, investir em saúde, aí começo realmente a ter o desenvolvimento desejado (…). Nós temos avanços, óbvio, mas, como eu digo a você , dentro de um contexto universal de progresso, porque a técnica é a ciência, de alguma forma, apenas dessas irresponsabilidades de gestores, eles nos imprimem, mas imprimem como um processo quase que corpóreo, não se evolui. Então você tem hoje uma mortalidade infantil menor, você tem algum acesso à informação, à mídia. Mas se você fizer estudos comparativos entre as nossas distâncias com o Primeiro Mundo, elas se tornam cada vez maiores.
O livro vai agora para a segunda edição. Terá alguma mudança?
Vamos apenas atualizá-lo. Já está em prelo, na Gráfica da CEPE (Companhia Editora de Pernambuco), que é quem está fazendo essa edição.
Além do livro, que outras iniciativas da sua gestão o senhor destacaria?
Ah, tivemos muitas em termo de programa. Tivemos a instituição da medalha (Medalha Professor Fernando Figueira), mas essa já se instituiu desde o tempo do Ricardo Paiva. Se você pegar a primeira revista nossa, logo em que a gente tomou posse, [você vai ver que ali] eu deixei claro qual era o meu norte de gestão. Não tinha e não tenho nenhuma ambição a não ser o de dar continuidade ao programa de grupo, que é um só. Aqui não existe, na verdade, nesses cinco anos de 2003 a 2008, duas gestões, em termos ideológicos e de planejamento. Nós temos uma gestão só, apenas com coordenações renovadas. (…). O norte é dá continuidade e ter coerência com as programações institucionais. (…) Aqui nós temos política de instituição, nós não temos política de gestão.
O Cremepe chega aos cinqüenta anos em que situação perante à classe e à sociedade?
Acho que chega bem, chega com maior crédito perante a sociedade e perante a classe médicas. Um dos elementos documentais disse é, por exemplo, essa eleição que se vau fazer agora. Em quinze anos é a primeira vez que nós vamos ter uma chapa única. Acho que isso é sintomático de, pelo menos, um referendo a gestão pela classe médica. E eu acredito que mais ainda pela sociedade, pois sobretudo nesses últimos cinco anos nós temos desenvolvido muitas ações junto com a sociedade, deixando muito claro que essa instituição pertence à sociedade e que os trabalhos que se faz em prol do médico e também se faz de maneira a disciplinar o próprio médico na área juricante, os trabalhos doutrinários, pedagógicos, todos são feitos no final em benefício da sociedade.
E como está sendo comemorado esse meio século do Conselho?
Nós fizemos uma programação para marcar esses 50 anos, para comemorar esses 50 anos. Fizemos um programa, na verdade tivemos o apoio da Prefeitura do Recife e no Santa Isabel, que nos foi cedido pela prefeitura, juntamente com um número de arte nós fizemos um evento. Fizemos um almoço festivo no Rose Beltrão reunindo todos os ex-presidentes e famílias. Publicamos um número especial da revista movimento médico. Estivemos presente em homenagens que foram a partir daí desenvolvidas na Câmara dos Vereadores e na Assembléia Legislativa, fizemos um programa específico de televisão. E foram essas assim as iniciativas comemorativas dos 50 anos. Eu acho que foi muito importante. Essa revista foi feita, ficou muito boa, só até suspeito, mas é que ela ficou muito boa. É tivemos a participação forte de Homero Fonseca, que fez um trabalho belíssimo também. Homero resgatou a história, desenvolveu a história do Conselho juntamente com a própria evolução social, mais especificamente da sociedade pernambucana nesse período de meio século, e de certa forma da sociedade brasileira também.Eu acho que ficou de caráter documental.
Ao longe desses dois anos e meio, que encontros, seminários, congressos foram realizados aqui no Cremepe?
Nos últimos cinco anos, nós tivemos um encontro do Nordeste, dos Conselhos regionais de medicina, no período da gestão de Ricardo e tivemos outro encontro do Nordeste no meu período de gestão. Então, dois encontros de medicina regionais num só Estado em cinco anos é um marco, porque nos temos muitos estados no Nordeste. Então para repetir esse encontro nos teríamos que esperar por muito tempo, mas por escolha dos próprios Estados nordestinos nós tivemos dois encontros aqui nesses últimos cinco anos. Nós passamos a interagir na política nacional de saúde dos Conselhos de maneira muito mais fortes, talvez de forma ímpar na história do Conselho de medicina. [Nessa gestão] eu participei de quatro comissões nacionais do Conselho Federal de Medicina, fundamentais, [como a] Comissão de Recadastramento dos Médicos, a Comissão da Resolução Eleitoral dos Médicos e a Comissão de Revisão do Código de Ética Médica. (…) Pernambuco hoje é o representante do Nordeste na Comissão Nacional de Revisão do Código de Ética. Em síntese, as nossas ações hoje, como o Estado, são despontam no cenário nacional de caráter conselhal. Eu acho que é algo relevante porque é preciso Pernambuco se fazer cada vez mais presente nesse processo federativo.
No dia 30 de setembro, o senhor deixa a presidência do Conselho. Como o senhor avalia esses dois anos e meio à frente da entidade?
Foi um período de muito esforço, de dedicação quase exclusiva. A gente reduz o consultório, fica com o metabolismo basal, porque é o nosso destino e opção. È o destino escolhido, mas então tem que se manter. Há esforço familiar muito grande, a função da presidência é muito salutar que seja só por dois anos e meio, porque os encargos são muito grandes, não dá para suportar muito mais tempo do que isso. E a nossa convicção política é de renovação. A gente tem por definição de grupo não perpetuar-se em cargos desse porte. Então acho que estamos fazendo o nosso sucessor de forma absolutamente tranqüila, a maior tranqüilidade dos últimos 15 anos. Como eu lhe disse, é chapa única, ninguém quis se inscrever, concorrer, contestar ou competir. Tivemos, então, reconhecido de alguma forma pela sociedade, por que através das manifestações de várias sociedades civis organizadas, do próprio cidadão, através dos nossos acessos, através dos e-mails, das portas de entrada para a sociedade dentro do Conselho, referendos significativos de êxitos e esforços desenvolvidos. Mas eu não seria a pessoa mais indicada para fazer uma análise sobre isso.
Mas qual é o sentimento?
Eu me sinto tranqüilo, me sinto com o dever cumprido. Se não posso definir isso como êxito – e não devo, por que seria êxito próprio, e quando você encara e entende assim não se pode alardear, porque aí seria ufanismo e ufanismo não seria recomendável – , agora eu posso convictamente colocar que estou em paz com a consciência, pelo dever que eu acho que está realmente cumprido.
Da Assessoria de Comunicação do Cremepe.
Entrevista concedida ao jornalista Antônio Martins.
Publicada na revista Movimento Médico nº 11.







