Segundo o Cremepe, alunos do curso de medicina que substituem profissionais em busca de renda estão cometendo dois tipos de delitos
Um emprego que oferece autonomia para a tomada de decisões e uma boa renda no fim do mês. Uma oportunidade e tanto para os alunos de medicina. Mas é crime. O plantão ilegal, como é chamada a prática de assumir o lugar de um médico realizando atividades exclusivas da profissão sem supervisão, atrai universitários movidos pelo desafio de exercer o trabalho com independência e pela chance de receber salários incompatíveis com a realidade de qualquer estudante. Segundo o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco, a média paga ilegalmente aos universitários é de R$ 800 por plantão de 24 horas. Mas há quem receba R$ 7 mil em um mês. E, assim, consiga comprar até carros. Porém, ao substituírem médicos, os estudantes praticam dois tipos de crimes: exercício ilegal da medicina e falsidade ideológica.
Nos últimos dois anos, o Cremepe tomou conhecimento de cerca de 10 casos de estudantes que assumiam ilegalmente plantões no lugar de médicos. Seis apenas neste ano. Nos últimos cinco anos, 43 casos de exercício ilegal da medicina, envolvendo não só universitários, foram flagrados pelo conselho. No estado, há 2.645 alunos de medicina, em quatro instituições. Nas universidades, todos sabem, mas poucos falam. E, quando falam, raramente aceitam se identificar. Segundo os estudantes, os plantões ilegais, em geral, são assumidos em cidades do interior. As menores e mais distantes da capital são mais atrativas e difícilmente um estudante é pego. E a população, normalmente, não desconfia ou não denuncia.
Escondido sobre o pseudônimo de João, um médico recém-formado que deu plantão ilegal no último período da faculdade, aceitou contar sua história ao Diario. O caso ocorreu em um pequeno município da Zona da Mata pernambucana. João atuou sozinho na emergência de um hospital, sob a conivência do diretor da unidade, que ficava na cidade, de “sobreaviso” caso acontecesse algum problema. Como o hospital é de pequeno porte, o estudante atendia os casos de menor complexidade e transferia os mais graves, como as vítimas de acidentes de trânsito. Um dia João foi desmascarado.
“A transferência é o nó cego. É aí que todo mundo treme”, disse. Na hora de transferir, é preciso informar à central que faz a regulação dos leitos o número do CRM, que só os médicos possuem. Esse registro segue uma ordem numérica, o que permite identificar se foi concedido há pouco ou há muito tempo. Quando informa a numeração, o estudante está assumindo a identidade de um médico, no caso de João, do próprio diretor da unidade, que forneceu o CRM. “Uma vez fui fazer uma transferência e o cara percebeu que eu estava usando um CRM antigo e tinha a voz jovem. Ele me deu uma lição e liberou a senha para a transferência porque o paciente estava grave”, contou. Mas foi só o susto. João não sofreu punição, comprou um carro financiado com dinheiro do plantão ilegal e, já formado, continuou trabalhando lá.
Segundo ele, em média, o estudante ganha em torno de R$ 3 mil por mês exercendo a profissão de médico. “Normalmente, os universitários fazem isso a partir do 5º ano do curso. Mas já vi casos até de 4º período (2º ano). Minha turma tinha entre 70 e 80 alunos. Praticamente toda a turma dava plantão (ilegalmente) ou algum dia já deu”, disse. O curso de medicina tem duração de seis anos. “Além de prejudicar a formação do aluno, o plantão ilegal não faz parte da formação acadêmica, não é vantagem do ponto de vista ético e ainda prejudica o atendimento à população”, disse a vice-presidente do Cremepe, Helena Carneiro Leão.
Segundo o secretário de Controle Externo em Pernambuco do Tribunal de Contas da União, Evaldo José, como o Sistema Único de Saúde é tripartite (recursos da união, do estado e no município), a fiscalização de casos desse tipo é compartilhada. Ela pode ser feita pelo TCU, pelo Tribunal de Contas do Estado, pelo Departamento de Auditoria do SUS (Denasus) e pela Controladoria Geral da União (CGU).
Para atuar…
– Lei 3.268, de 1957 diz que a medicina deve ser exercida por profissional habilitado e legalmente inscrito no conselho de medicina de seu estado
– Resolução do Conselho Federal de Medicina de n° 663, de 1975, diz que os estudantes de medicina não estão aptos, ainda que nos últimos períodos da faculdade, a exercer a medicina sem a supervisão de um profissional médico
– O artigo 38 do Código de Ética Médica prevê que os responsáveis técnicos e gestores médicos que contratam estudantes para exercer a função de médico, incorrem em infração ao “acumpliciar-se com os que exercem ilegalmente a medicina”
O Código Penal Brasileiro prevê como crime:
– Artigo 282 – exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites
– Pena – detenção de seis meses a dois anos. Parágrafo único – se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa. Para o crime de falsidade ideológica é prevista reclusão de um a cinco anos
Posição oficial do Cremepe sobre o exercício da medicina antes da formatura:
– Não traz aprendizado nem conhecimentos novos
– Prejudica a formação do raciocínio clínico
– Contamina o olhar do estudante com preconceitos e práticas de duvidoso valor ético
– Prejudica os pacientes, aumentando as possibilidades de morte e complicações
– Ameaça o emprego futuro do estudante, desempregando os médicos de hoje
Denúncias podem ser feitas pelo 2123.5777 ou a uma delegacia
Fonte: Cremepe
A dificuldade de coibir a prática
Não é por falta de prática durante o curso que os estudantes dão plantões ilegais, garantem os coordenadores das graduações mais antigas e com maior número de estudantes de medicina do estado, as universidades de Pernambuco e Federal de Pernambuco. Segundo o coordenador do curso da UFPE, Oscar Coutinho, desde a reforma curricular, em 2003, o tempo de internato na instituição – que ocorre no fim do curso e corresponde ao estágio curricular obrigatório – passou de um para dois anos. E a prática começa bem antes, já no 1º período, com atividades em unidades do Programa de Saúde da Família. Na UPE, o internato tem duração de dois anos desde 2001, a prática também começa no 1º período e do 4º ao 8º período o estudante atua em plantões obrigatórios sob supervisão, como observadores.
Para Coutinho, os plantões ilegais têm raiz na existência de poucos estágios extracurriculares com pagamento de salário para medicina e na grande oferta de trabalho ilegal para os estudantes na periferia da Região Metropolitana do Recife e no interior. A coordenadora da graduação da UPE, Dione Maciel, alega que as universidades têm dificuldade em coibir a prática devido ao cronograma dos cursos de saúde, ao direito que os alunos têm a 25% de faltas e ao fato de os plantões ilegais exercidos por estudantes, em geral, ocorrerem fora do horário de aulas, como nos fins de semana. Hoje o regimento da UPE não prevê punição para o estudante que comete esse crime, mas Dione alega que está em curso a criação de um código de ética, com sanções disciplinares para essa prática. Na UFPE, se houver uma queixa formal, como um boletim de ocorrência, o aluno pode ser submetido a um inquérito administrativo. E pode ser punido com advertência, suspensão ou expulsão, o que nunca ocorreu.
Na Secretaria Estadual de Saúde (SES), há 144 estagiários que recebem bolsa. Nenhum é de medicina. A razão está na chamada lei do estágio, que estabelece restrições que dificultam a contratação de estudantes dessa área. Segundo a diretora geral de educação em saúde da SES, Maria Emília Higino, nos hospitais do estado só entram estudantes de medicina que estejam no internato (dois últimos anos), fazendo estágio curricular obrigatório mediante convênio assinado com a universidade, sem pagamento.
Universitários divididos
O plantão ilegal divide opiniões mesmo entre os estudantes de medicina. A autonomia profissional, a dificuldade financeira do aluno que precisa se manter na faculdade durante seis anos e a escassez de médicos que queiram trabalhar no interior são algumas delas. Entre os defensores, também há quem diga que o universitário que está terminando o curso está mais preparado que muitos médicos que estão no campo de trabalho, mas não se atualizam. “Estamos por dentro das novas diretrizes. Às vezes, o profissional mais antigo não está”, disse um estudante da UPE que não quis se identificar. E há o contrário. Estudantes que criticam seus colegas afirmando que ao aceitar trabalhar no lugar de um médico, está tirando o trabalho dos profissionais e, por vezes, participando de redes de corrupção, como mão de obra barata.
O estudante do 12º período de medicina e blogueiro Thiago Henrique Silva critica a prática em posts como o que recebeu o sugestivo nome de “A arte de colocar em risco da vida da mãe# dos outros”. “Será que(esses alunos) não percebem que estão sendo usados como uma pequena peça de um crime muito maior, que é o desvio das verbas da saúde?”, questiona. Thiago Silva disse que os convites para os plantões rolam no boca a boca, dentro da universidade.
Segundo uma estudante que não quis ser identificada, às vezes a secretaria de saúde do município não toma conhecimento do crime. De acordo com ela, é comum o médico chamar um universitário para dar plantão no seu lugar. Quando isso ocorre, o pagamento sai no nome do médico e não há registro da “contratação” ilegal. De uma forma ou de outra, os alunos, em geral, não assinam contratos, já que isso seria a formalização (e a prova) do crime.
De acordo com o advogado e presidente da Associação Pernambucana de Direito Médico e da Saúde, Eduardo Dantas, o médico que concede o CRM para o estudante dar plantão no seu lugar incorre no crime de falsidade ideológica. Em casos desse tipo, o Cremepe investiga a responsabilidade ética dos médicos envolvidos. A pena máxima é de cassação. O gestor do hospital ou da prefeitura que estiver envolvido na contratação ilegal de estudantes pode responder por improbidade administrativa.
Da Assessoria de Comunicação do Cremepe.
Fonte: Diario de Pernambuco.







