Espera para fazer uma cirurgia eletiva (aquela que não implica em risco de vida imediato) pode chegar a até cinco anos. Com estrutura inferior à demanda, hospitais dão prioridade às urgências
BRASÍLIA – Desde que despencou de um ônibus e fraturou o joelho direito, em 2007, o motorista Erismar Sousa Sá, 36 anos, vive à base de compressas, anti-inflamatórios e injeções para dor. O problema poderia ser resolvido com cirurgia, mas se transformou numa tragédia sem prazo de validade. Quase três anos se passaram, e ele perambula por hospitais públicos do Distrito Federal, à espera do dia de entrar no bisturi. A exemplo de milhares de brasileiros, permanece “encostado” numa fila que não sabe como anda e onde termina. Só nas sete maiores capitais do País – São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Brasília, Fortaleza, Belo Horizonte e Curitiba –, pelo menos 171,6 mil pessoas aguardam a chance de se operar, agonia que pode levar até cinco anos.
O número se refere às chamadas cirurgias eletivas (aquelas que podem ser agendadas, por não implicarem risco imediato à vida). São mais de mil procedimentos, que vão de uma retirada de amígdala à correção de uma fratura na coluna. A pesquisa foi feita pela Agência O Globo nas secretarias municipais e estaduais de Saúde, mas elas próprias admitem que os dados estão subestimados. Na maioria dos Estados e capitais, gestores responsáveis pela administração da fila têm dados parciais sobre a demanda reprimida ou nem sequer os possuem. Em muitos casos, transferem a regulação aos hospitais, que definem as prioridades conforme seus interesses.
O problema da fila tem raiz na estrutura da saúde pública. Como a quantidade de leitos, profissionais e equipamentos é inferior ao necessário, as unidades de saúde priorizam procedimentos de urgência e emergência. Sem uma coordenação unificada dos serviços, o cidadão não sabe quando terá vez.
Também contribui para a fila a lógica do mercado. Médicos e hospitais conveniados preferem realizar cirurgias privadas ou de convênios, que remuneram melhor que o SUS. Dados do Instituto Brasileiro para Estudo e Desenvolvimento do Setor de Saúde apontam que, em geral, a tabela do serviço público paga 50% do valor coberto pela rede particular. Em Belo Horizonte, uma das poucas cidades que unificaram dados sobre cirurgias numa central, a Secretaria municipal de Saúde tem complementado o valor dos procedimentos, com base no cumprimento de metas, para equilibrar a relação e aumentar a produtividade. Na retirada de um útero, cujo repasse do SUS é de até R$ 460,05, o acréscimo chega a R$ 1 mil.
A precariedade das informações Brasil afora é evidente. Enquanto Belo Horizonte informa ter 51,8 mil pessoas na fila, a Secretaria municipal de Saúde de São Paulo, com população quatro vezes maior, diz ter 22,7 mil pacientes nos hospitais na fila da cirurgia eletiva. O Estado, responsável por outra parte da prestação do serviço, não dispõe de estatística. No Rio, o município divulga apenas quantos cidadãos chegaram à etapa final da fila e passam por avaliações clínicas para a cirurgia (5,1 mil), mas não apresenta quantos estão represados em outras fases do processo de espera. Só o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into) no Rio informou este ano que a fila de espera tem 20 mil pessoas.
Professora de Saúde Pública da UFRJ e diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Lígia Bahia diz que a situação traz consequências perversas. A espera pode agravar o quadro de saúde. Sem gestão efetiva das filas, não há como priorizar casos mais graves com base na idade, tempo de espera e situação clínica. A falta de transparência impede que ele saiba em que lugar da lista está. “Algumas pessoas levam vantagem com isso, o que é uma tragédia”, diz.
Reservadamente, secretários municipais admitem que, para os estabelecimentos, é mais interessante financeiramente operar pacientes de menor gravidade, o que garante maior rotatividade dos leitos e lucro. “Se temos um sistema único de saúde, temos de ter um sistema único de informações. Essas questões não podem ser decididas por um estabelecimento ou profissional”, afirma Lígia. “Tornou-se natural uma pessoa ficar três, cinco anos esperando.”
Ela lembra que, em países como Inglaterra, há limites para a espera, e o Brasil tem de caminhar para regulamentação semelhante. Preocupado com a situação, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) estuda medidas para acabar com a inconsistência e sonegação de informações. O assunto pautou reuniões durante este mês. Em junho, o grupo discutirá com o Ministério da Saúde, representantes de Estados e municípios proposta da Controladoria Geral da União para a criação de um portal da transparência do SUS, que agregue informações reais sobre o sistema.
A Procuradoria Geral da República se dispôs a colaborar. Segundo o presidente do conselho, Francisco Batista Júnior, quem não tem controle da situação pode ser processado: “É um atestado de incompetência um gestor municipal afirmar que não tem a demanda que precisa atender”, critica. Batista diz que, desde o fim de 2009, cobra do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, sem sucesso, dados sobre a fila.
Os secretários admitem falhas, mas ponderam que têm feito investimentos para melhorar a gestão. No Rio, das 108 mil internações cirúrgicas do ano passado, apenas a metade passou pelo sistema de regulação da prefeitura, nos cálculos da subsecretária geral de Saúde, Ana Maria Schneider. O restante ficou a cargo dos hospitais. Ela diz que um novo modelo foi implantado.
ARGUMENTO
O Ministério da Saúde não nega a defasagem de sua tabela, mas argumenta que nos últimos anos vem aplicando reajustes. A última atualização, em 2008, teria contemplado mais de mil procedimentos. Na ocasião, dos 90 incluídos na política nacional, 59 tiveram aumentos. O percentual médio aplicado não foi informado.
Em nota, o ministério também argumenta que, embora a responsabilidade sobre as filas seja de Estados e municípios, mantém desde 2004 a Política Nacional de Procedimentos Cirúrgicos de Média Complexidade, para aumentar a produtividade no SUS. Gestores locais enviam projetos apontando suas demandas, e o governo federal repassa verba. O programa abrange 90 tipos de procedimento.
Em 2008, foram enviados 223 projetos, com pedido de 311,4 mil cirurgias em 3.051 municípios. Até março deste ano, foram transferidos R$ 229,4 milhões para a execução dos serviços. A avaliação das cirurgias que serão feitas a partir de julho está sendo concluída.
Buscar a Justiça é uma das saídas
Cada vez mais brasileiros têm recorrido à Justiça para garantir o direito de serem submetidos a cirurgias. Há uma média de 50 ações todo mês contra o SUS
BRASÍLIA – Diante da incerteza nas filas, o brasileiro tem recorrido à Justiça para garantir o direito de se operar. A demanda por liminares é crescente nas defensorias públicas. No Distrito Federal, o órgão criou um núcleo de saúde em 2009. Mensalmente, a média é de 50 ações contra o SUS para obrigá-lo a fazer os procedimentos. São casos como o do eletricista Valdeir Fábio Ferreira, 35 anos, internado desde 12 de janeiro no Hospital de Base de Brasília, vítima de uma queda que lhe rendeu uma lesão medular.
Imobilizado numa maca da ala de neurocirurgia, ele aguarda operação de fixação da coluna para iniciar a reabilitação. Quanto mais o tempo passa, menores as chances de recuperação. Ferreira não pode se sentar e levar adiante a fisioterapia. Há risco de complicações, como escaras, tromboses e atrofia nas pernas.
A expectativa era que Ferreira fosse atendido logo, mas, conforme a direção do hospital, uma peça do arco cirúrgico – equipamento necessário à operação – estragou e não foi substituída.
Desesperado, o paciente escreveu carta ao presidente Lula pedindo ajuda. A Presidência respondeu, assegurando vaga no Hospital Sarah Kubitschek. Porém, sem a intervenção não é possível fazer a transferência. “Só durmo quando o sono vence a dor. A fisioterapeuta disse que a cirurgia ajuda a diminuir o sofrimento”, lamenta.
Segundo a Secretaria de Saúde do DF, 263 pessoas estão na mesma situação no Hospital de Base. Na ala feminina da neurocirurgia, a enfermeira Franciane Agatiello, 28, internada desde março após um acidente de carro, soube que, caso quisesse pagar, a cirurgia custaria R$ 90 mil. Sem condições, resolveu processar o governo do DF para conseguir fazê-la pelo SUS.
Em relatório anexado à ação, um médico do hospital diz que as equipes passam por limitações descabidas. “Não temos filmes para documentar exames, fios cirúrgicos, não temos esparadrapos”, escreveu.
“Fiz pós-graduação em saúde pública, mas não imaginava que o SUS fosse assim”, resume Franciane, apavorada com a possibilidade de perder os movimentos das pernas.
DÉFICIT
No Distrito Federal, a espera média por cirurgia eletiva é de seis meses. Há déficit de 190 anestesistas, segundo o secretário de Saúde, Joaquim Carlos da Silva Barros. Ele admite que o problema está nos valores pagos aos profissionais: “Para recém-formados, é mais negócio ingressar na rede privada. Um salário inicial de médico do SUS varia de R$ 4 mil a R$ 5 mil por 20 horas semanais. Na rede privada ele ganha isso por um procedimento”.
Também faltam profissionais de clínica médica, pediatria e neonatologia. O governo do DF fez concurso para contratar 120 anestesistas. A entrada deles, diz Barros, resolveria. “Se ficarem na rede, a gente consegue zerar a fila em quatro meses. Vamos ver.”
Da Assessoria de Comunicação do Cremepe.
Fonte: Jornal do Commercio.







