MEC pode autorizar mais 107 cursos para formação de médicos no país, sendo 11 em Minas. Entidades informam que há escolas demais e questionam qualidade do ensino
O Ministério da Educação (MEC) estuda autorizar a abertura de mais 107 cursos de medicina no país, 11 deles em Minas. A informação é confirmada por fontes do ministério e pelo professor Antônio Celso Nunes Nassif, ex-presidente da Associação Médica Brasileira e do Conselho Nacional de Saúde e docente da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mas o assunto é tabu no MEC. Oficialmente, são confirmados 70 projetos em tramitação, seis no estado. Questionado sobre as autorizações, o ministro da Educação, Fernando Haddad, prefere não se pronunciar e o tema não pode ser discutido no governo federal. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), desde o início da enxurrada de novas graduações, nos anos 1990, os erros médicos subiram mais de 1.000%. O CFM defende suspensão das liberações por 10 anos e o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRMMG) também luta para barrar as tentativas.
Entre universitários, professores, membros do Conselho Nacional de Educação (CNE) e entidades representativas da categoria reacende o debate sobre a qualidade das graduações e o poder das autorizações como moeda de troca política. Principalmente, porque a União centralizou todo o processo de autorização dos cursos de medicina, mercado altamente lucrativo. Antes do Decreto Federal 5.357, de maio deste ano, cabia ao MEC preparar relatórios sobre os projetos encaminhados à Secretaria de Ensino Superior (Sesu) e remetê-los ao CNE. Na Câmara de Ensino Superior desse corpo coletivo, formada por educadores, dirigentes de escolas e reitores, era designado um relator e as solicitações eram apreciadas in loco. A partir dessa visita, era dado parecer, votado em assembléia e enviado ao MEC, que homologava o pedido, como órgão executivo do sistema educacional.
Se o relatório do CNE fosse favorável, o ministro oficializava a abertura do curso por meio de portaria publicada no Diário Oficial da União. Agora, é incumbência do governo federal julgar, diretamente, os projetos. De acordo com o decreto, haverá ainda consulta a associações de classe e ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), mas sem poder de veto. Na prática, a legislação não garante a participação dessas entidades. Prova disso é o fato de o CNS, desde 1996, não emitir parecer sobre o assunto, apesar de previsto em lei. “A situação de Minas é uma das mais graves, mas o conselho desistiu de participar desse processo, porque sua opinião não era levada em conta. Hoje, não é feita uma análise da necessidade social de uma graduação”, afirma a secretária-executiva do CNS, Eliane Cruz.
Junto com os conselhos estaduais de saúde, o CNS, também corpo coletivo de estado, avaliava, com base no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de uma região, a pertinência de mais uma graduação médica para a população da área. “No estado, com o número de instituições existentes, não são necessários novos cursos, mas sim um redirecionamento dos profissionais”, diz Eliane. Dados da Associação Médica de Minas Gerais (AMMG) confirmam a afirmativa. No Brasil, líder mundial em cursos de medicina, há um profissional para cada 580 habitantes; em Minas, a proporção é de um para 613 e, em Belo Horizonte, um para cada grupo de 180 pessoas. Hoje, 1.029 formandos são lançados no mercado mineiro, anualmente. O número pode chegar a 2.942, quando todas as 22 instituições, incluindo a Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), a mais recente autorizada a oferecer o curso, formarem a primeira turma.
SEM GLAMOUR – Para o médico residente do Hospital de Pronto-Socorro João XXIII Paulo Bastianetto, de 28 anos, o diagnóstico é prenúncio do caos. “A situação já está insustentável e não há justificativa para abertura de mais cursos no estado. Conseguir vaga na residência está mais difícil do que passar no vestibular. Os vestibulandos devem analisar bem a escolha da profissão, porque não há mais aquele glamour em ser médico. Hoje, com tantos profissionais desqualificados no mercado, por causa da autorização indiscriminada dos cursos, essa imagem caiu por terra”, reclama. A residência, período em que o médico se especializa e tem a oportunidade de viver a realidade dos hospitais quase em tempo integral, não é obrigação curricular do curso. Em Minas, o número de vagas de primeiro nível, pré-requisito para os demais, credenciadas no MEC (820), não supre a demanda dos cursos já existentes.
Com a reforma universitária, o CNS tenta conquistar poder deliberativo e um novo alinhamento do processo de abertura das graduações, especialmente com a redefinição das incumbências de conselhos e organizações de controle social e maior interface do Ministério da Saúde (MS) com o MEC. Os conselheiros acreditam que o MEC tem condições técnicas para definir a grade curricular das graduações e demais aspectos pedagógicos. Já o caráter humano da formação e a maneira como os estudantes seriam inseridos no sistema de saúde pública deviam ficar a cargo do MS. Em síntese, o CNS prega a compreensão de cinco questões básicas, que norteariam a autorização de uma nova graduação – precisa-se de um profissional de saúde onde, para quê, por que, quem será ele e quais competências precisa ter.
Números
– 580 habitantes para cada médico no país
– 613 pacientes em MG para cada profissional; em BH, há um médico para cada grupo de 180 pessoas
– 1.029 formandos são lançados no mercado mineiro anualmente; o número pode chegar a 2.942 com as novas escolas
Médicos cobram qualidade
Além de pedir transparência na criação de cursos, especialistas temem que, com a proliferação de escolas, haja queda acentuada na formação de novos profissionais e piora no atendimento
Membro do Conselho Nacional de Educação (CNE) e vice-presidente da Câmara de Educação Superior, o professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Paulo Barone apóia um sistema de regulação da educação superior independente de estruturas de governo. “A autorização para abertura das graduações devia ser concedida por uma agência independente”, defende. Para ele, os integrantes desse organismo não poderiam fazer parte de entidades representativas de classe ou conselhos. “Seria o mesmo que lotear os interesses. O quadro devia ser técnico, instituído por concurso, com carreiras de estado e dotação orçamentária”, sugere.
Com a publicação do Decreto Federal 5.357, ele afirma que o processo de criação dos cursos de medicina perdeu o caráter de deliberação coletiva. “Mas do jeito que estava, o processo tinha se tornado uma disputa de poder. Não há ilegalidade na decisão do governo federal e, graças a ela, o CNE passa a desempenhar sua atividade fim, que é atuar no credenciamento e recredenciamento”, diz.
Antes da nova legislação, somente universidades e centros universitários eram avaliados pelo conselho, menos de 20% da rede de 3º grau. Agora, todas as faculdades precisam passar pelo crivo do CNE para se manter no sistema federal de ensino superior e o MEC, respaldado pela Constituição Federal, pode ser o único órgão do poder público a julgar os processos de criação de cursos.
O decreto prevê ainda mais transparência à tramitação dos projetos de autorização de graduações. Funcionários da Secretaria de Ensino Superior (Sesu), braço do MEC que ficará responsável por esse processo, participam de treinamento para aprender o E-MEC, novo sistema operacional de gestão das informações. “Ele é um aperfeiçoamento dos programas aplicados hoje e vai poder ser acessado pela internet”, afirma. O conselheiro não vê problema na criação de mais cursos de medicina no Brasil. “O Plano Nacional de Educação, publicado pela União em 2001, estabelece que o país precisa ter 30% dos seus jovens matriculados no ensino superior até o fim da década. Absurdo é tanta gente querer fazer medicina por status, sem vocação”, diz.
Já o diretor do Hospital Pronto Socorro (HPS)João XXIII e coordenador geral da Central MG Transplantes, o médico Charles Simão Filho, não vê com bons olhos a possibilidade. “A medicina não pode ser reduzida a uma simples concorrência de mercado. Temo pela qualidade dos profissionais egressos desses cursos, porque os mesmos conhecimentos passados a um médico, que atua com procedimentos de alta complexidade, têm que ser passados àqueles empenhados na atenção básica em saúde”, compara. Entre as dificuldades, ele enumera a falta de cadáveres, pacientes, hospitais credenciados para residência e aulas de clínica médica. “A rede já tem médicos suficientes. É preciso criar, em vez de cursos, políticas salariais e condições de trabalho dignas para interiorizar os profissionais”, destaca.
O médico recém-formado e cirurgião geral do HPS Pablo Acácio Oliveira Nunes Leal, de 27 anos, ressalta o aumento de erros médicos. “É incabível criar mais graduações comprometendo a vida das pessoas”, lamenta. Em 2003, segundo o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRMMG), foram instauradas 289 sindicâncias e 43 processos éticos profissionais. Conforme levantamento feito até setembro deste ano, já são 932 ações no total. “Cerca de 10 mil alunos estudam no exterior e, quando se formam, retornam para o Brasil. Já temos 159 escolas médicas, nove a mais que a China e 19 a mais que a Índia. A criação de mais 101 cursos é duplamente preocupante, porque consolida a política partidária de concessão e abre a guarda para requisitos mínimos que deviam ser exigidos.
Destruiria por completo o ensino da profissão no país”, afirma o doutor Antônio Celso Nunes Nassif, ex-presidentes da Associação Médica Brasileira e do Conselho Nacional de Saúde.
Análise da notícia
Todos os anos, nas diversas universidades do país, o curso de maior procura nos vestibulares é o de medicina. As mensalidades são as mais altas e o mercado de graduação altamente rentável. Os últimos anos foram marcados por alterações profundas em todos os setores da área de saúde, a começar pelo ensino médico, que envolve 159 escolas. As últimas 55 foram criadas neste começo de século, sem análise criteriosa de necessidade social. Num país que, em 1960, havia 29 instituições médicas, esse festival de cursos é anúncio de desemprego e queda na qualidade dos serviços prestados na rede pública. (IFA)
Ensino de medicina em minas
Até 1989 – As escolas eram criadas pelo MEC ou pelo governo estadual. Havia 10 cursos, cinco de instituições públicas: UFMG, Universidade Federal de Uberlândia, Universidade Federal de Montes Claros (Unimontes), Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade do Triângulo Mineiro, em Uberaba; cinco das instituições privadas: Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Faculdade de Medicina da Universidade de Uberaba, Faculdade de Medicina de Itajubá, Faculdade Ciências Médicas Doutor José Antônio Garcia Coutinho e Faculdade de Medicina de Barbacena.
1989 – Com a promulgação da Constituição mineira, artigo 82 das disposições transitórias, as fundações de ensino superior instituídas pelo estado ou com sua participação poderiam optar entre ser absorvidas pelo sistema público estadual, transformando-se em unidades da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), ou extinguir o vínculo com o poder público, mas permanecendo sob a supervisão pedagógica do Conselho Estadual de Educação.
1996 – Segundo a LDB da Educação, Lei Federal 9.394, compete à União “autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos de seu sistema de ensino”. Segundo a mesma lei, o sistema federal de ensino compreende, além dos órgãos federais de ensino, as instituições de educação superior criadas e mantidas pela iniciativa privada. Em Minas, no entanto, por causa da brecha na Constituição estadual, isso não aconteceu e foram criadas as instituições de ensino de medicina mineiras privadas, hoje sub judice.
2001 – O decreto do então governador Itamar Franco, que permitiu a criação de faculdades privadas no sistema estadual de ensino, contrário à LDB, é alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
2005 – Assembléia Legislativa de Minas proíbe a autorização de cursos privados de saúde pelo estado, por meio de Emenda à Constituição de Minas Gerais nº 70. Em março de 2006, o Ministério Público Federal entrou com ação contra o governo estadual, que foi remetida ao Supremo.
Da Assessoria de Comunicação do Cremepe.
Com Informações do jornal O Estado de Minas (MG).







